Diário Íntimo

16 de fevereiro de 1874. – Percorri a obra de James Fazy (Cours de législation constitutionelle, 1873) é a apologia e a apoteose do radicalismo, considerado como método e como expressão da inteligência coletiva das sociedades. Estou estupefato (…)

Lisonjear para reinar é a prática dos eunucos de todos os sultões, dos cortesãos de todos os absolutismos, dos favoritos de todos os tiranos. É antiga e banal; mas não é por isso menos odiosa. Rastejar perante um autocrata me parece menos vil e menos vergonhoso do que rastejar ante as multidões, porque no primeiro caso a escusa da majestade histórica e a possibilidade da ilusão sincera, ao passo que La grande populance  et la sainte canaille não podem fazer nascer semelhante prestígio. (…)

A multidão é uma força material, dá força de lei a uma proposição, mas o pensamento sábio, maduro que tudo leva em conta e que, por conseqüência, tem verdade, esse pensamento não é jamais engendrado pela impetuosidade das massas. As massas são a matéria da democracia, mas a forma, isto é, as leis que exprimem a razão, a justiça. E a utilidade geral é produzida pela sabedoria, que não é uma propriedade universal. (…) p. 264-265

No dia 24 de fevereiro de 1874, em seu Diário Íntimo, Amiel fará reflexões sobre o cristianismo liberal (…)

As multidões não vêem Deus senão no Mistério e no Sobrenatural; tudo o que é compreensível é natural; ora, o que é natural não é divino. Tal é o seu raciocínio instintivo. Uma religião fácil e clara perde o seu prestígio sobre as almas. Uma crença sem amarguras, sem sal, sem maravilhoso permanece sem possibilidades de influência enérgica sobre o coração e sobre a vontade. Como a força em nós é inversa à luz, é a religião mais impenetrável à razão que nos dará o máximo de energia. (…) p.265-266

Diário Íntimo – AMIEL – Ed Tecnoprint – Tradução de Mário D. Ferreira Santos

Papa BENTO XVI renunciou, fevereiro 2013.

OFICINA DE CHARLES KIEFER

  1. images O tema era “Quando ela acordou o dinossauro ainda estava lá…
  2. Então eu escrevi assim: Paradoxalmente sinto o calor entrar, espio os verdes pendurados na sacada, feliz. Aliviada. Livre. Irresponsavelmente feliz. Então,  conforme o sugerido, eu penso: “Quando ela acordou o dinossauro ainda estava lá…”, e, junto com a visão, a percepção de universo que existiu, antes dela, ou nunca existiu, nem existirá depois dela, ou ainda existe… Não era perceptível. Ou melhor, nítido ao seu olhar… A visão, talvez, desmanchada pela sonolência. Acordar, assim, no meio do caminho, assusta. Assusta com ou sem dinossauro. Ela dormiu no meio do caminho, ela, simplesmente, dormiu. A isto chamamos fadiga, e, a este olhar alucinação.

A dor de José Luís Peixoto

Do livro NENHUM OLHAR de José Luís Peixoto uma descrição da dor.

 “Não há forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer.”

“O mundo, indiferente ao mundo que encarcerava o pai do José e que o pai do José encarcerava dentro de si, perseguia. Os pintos levantavam uma chuva miúda de piares carpidos, as galinhas indignavam-se na sua voz de ave, o galo gritava ocasionalmente. Mesmo na sombra, o sol queimava e ardia. Na tapada, atrás do muro do quintal, o sol levantava uma neblina tórrida dos restos de uma pequena seara. E, sem falar, pois as palavras são a pior forma de dizer, olhei o pai do José, sabendo que ele não me podia escutar, e disse o teu filho está muito mal, o teu filho sofre. E não disse mais nada. Não que se esgotasse o que havia para dizer, mas porque não há forma de dizê-lo, nem mesmo sem palavras. Não há forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer.” ( p.63) – Nenhum Olhar – José Luís Peixoto

Afundamos por vaidade

Existem numerosas espécies e gêneros de hortaliças, porém todas, segundo nossos princípios de classificação, jazem no lodo. Crescem aí e aí são colhidas. Batatas, tomates, chicória e nabos. Seres não-humanos e seres humanos. Alterando a analogia, poder-se-ia dizer que vivemos vidas que estão encaixadas desde o nascimento à morte. Desde o ventre de que nascemos à caixa da família, da qual progredimos para dentro da caixa da escola. Quando saímos da escola, já nos tornamos todos condicionados a viver numa caixa. Daí em diante, elegemos nossa própria caixa, uma prisão, um receptáculo em nossa volta…[1]

Perdas impostas. Decisões prementes no tempo  demarcado como certo, (e nem sempre tão certo, lá, dentro de nós). Perde-se autonomia. Soma de tentativas. Queremos crescer, mas permanecemos naquela primeira caixa quente… Útero materno: sem lutar, sem fazer força, sem dor. O conhecido,  primeiro sentimento experimentado… É o amor que nos afoga? A queixa é sempre o outro. Palavras que não explicam. Apenas palavras organizadas, ditas, repetidas estas usadas palavras que saem assim tão rápidas, lá de dentro da gente, num sufoco de angústia: somos palavras… Ou sou pedaço, buscando outro pedaço de um inteiro que desconheço. As pessoas justificam a vida quando explicam o mundo dos acontecimentos: guerras, miséria, superpopulação, desmatamento, imigração, poluição, discriminação, doenças. Pensam  estar inseridas no mundo, mas é o mundo que está dentro delas. O mundo (de dentro para fora) é cada um de nós. Nós é que carregamos este mundo, nós o imaginamos. O mundo é nosso olhar. Quem tu és? Preciso saber. Diferente de quem eu sou… Assim, tateando, tu e eu, na inquietude da alma, afundamos. Por vaidade e covardia receamos o fracasso antes mesmo de viver o encontro. Elizabeth M. B. Mattos


[1] Cooper,David. Psiquiatria e Antipsiquiatria. Editora Perspectiva. Coleção Debates. São Paulo. p.35.

GULA …

De volta a Porto Alegre. Não reconheci o cheiro: não mais terra molhada, não mais verde derramado da mata sob a chuva, mas selva de cimento. E tu me escreves:

Se não me afogas, resistiremos (talvez) a toda maré. Pois se não me afogas, não nos afogas.”F.T.

Gula de amor… Elizabeth M.B. Mattos

CARTAS DE AMOR

001

10 de fevereiro 2013 Torres – Sábado –

Passei a borboletear. Rir sozinha em suficiência mergulhada na euforia. Como se a magia do que é eterno existisse dentro de mim. Depois vem a defesa, as defesas necessárias para seguir com alegria: estamos a brincar como aqueles meninos do filme O pijama listrado, era este o nome? Dois mundos, o arame farpado. Certeza de amor que confunde, desencaminha… Alucina. A euforia do encontro tomou conta de mim: como se fosse possível encontrar o que se procurou a vida inteira! O conforto da cumplicidade. Mas fujo dos embates, eu me nego a ser triste, lamuriar, ou sofrer. Já alucinei na dor… Agora quero a vida, a que me autorizo, sem corpo, a vida desta decomposição do corpo, do que se pensa ser beleza. Como se a vida mesma espiada pelas grades da janela fosse combustão maior! Assim como menina, a menina tímida e escondida que sou/fui desejasse, tão tarde como agora, neste momento mesmo, se lambuzar no doce da vida imaginária. Tu és o mel. Tu és o sorvete, tu és o mar, tu és o sol queimando, tu és uma fatia do passado que me aperta. E de repente eu queria que tu fosses apenas o presente. Elizabeth M.B. Mattos  – fevereiro de 2013 – Torres

(4 février 1932) Lycée Carnot – Divon – Jeudi

Je ne sais pas où commencer! Ma tête est noyée, saturée de materiau. Alors, j’ ai reçu votre lettre, le télégramme.  Avant tout, bravo! Je suis transporté d’une joie immense par l’intérêt que vous prenez – c’est assez pour me soutenir.  Henry  Miller para Anaïs Nin

No ano de 1669 surgiu em Paris um livro intitulado Lettres portugaises traduites en français (“Cartas portuguesas traduzidas para o francês”), publicado por Claude Barbin, o editor de La Fontaine e de Mme. De La Fayette.

Fragmento da Terceira Carta:

[…] Sentir que eu estava com você era tão maravilhoso que eu não tinha como imaginar que um dia você estaria longe de mim […]. Prefiro sofrer mais do que esquecer você. Será que isso depende de mim? […] Não invejo sua situação, e você me dá pena. Desafio você a me esquecer para sempre. Orgulho-me de tê-lo conduzido a um estado tal que somente comigo você experimente o prazer perfeito; e sou mais feliz do que você, porque tenho mais ocupações. […] Sua ausência cruel, e talvez definitiva, não diminui em nada o êxtase do meu amor. Quero que o mundo inteiro saiba dele, não faço segredo, e me sinto feliz por ter feito tudo o que fiz por você, ainda que contra todo o tipo de decência. […]

(p.43-44) Editora Imago, 1992. Cartas de Amor  Mariana Alcoforado

Ainda o pintor Carmélio Cruz

2013-02-10 11.42.232013-02-10 11.43.53

REVISTA DO GLOBO

Falar em Carmélio é como caminhar por um imenso labirinto onde se apresentam surpresas, onde os corredores se perdem uns dos outros, nos levando ora ao topo de uma escada, ora ao começo de um precipício. Mas, mesmo assim, todos querem sabe, falar em Carmélio. Todos procuram, no homem, o pintor… O artista. Há quem se contente em saber notícias, tais como: Carmélio participou da Bienal em 1951; 2° Bienal em 1953; – 1° prêmio em desenho, e Menção Honrosa em pintura – 1957; tendo já em 1956 a Medalha de Bronze no Salão Paulista de Arte Moderna; Carmélio fazendo cinema e televisão; expondo em vários lugares do Brasil e participando VII Bienal em São Paulo em 1963; já enviando seus quadros para a Bienal deste ano.  Hoje Carmélio trabalha, cria e vive mais do que nunca: “Continuo trabalhando muito para a Bienal; exposição na Galeria Goeldi no Rio, Salão Paulista de Arte Moderna e ainda uma novidade: COMPANHIA RHODIA – criar novos padrões para tecidos – coleção 1965.” Carmélio é um cearense que carrega todo um mundo com ele. Mundo mágico, onde já existiu tristeza, lágrimas, dor. Nele está o encontro da alegria e da mágoa. É a imagem do cearense que leva o coração, ora aberto, ora fechado. É o “Carmélio-bandeirante”. (…) Explica sua cidades: “ Neste século de velocidade, do tempo-ouro, a cidade se agiganta e se transforma num bloco frio, cruel, constrangedor, apequenando o homem. Se o sol ilumina ou não a cidade ou não a cidade, se chove, isso nenhuma importância tem nessa pintura. O que importa, e muito, é o que acontece dentro da própria cidade. É o seu íntimo pungente, sofrido, vivido.”

É este Carmélio que mais se aproxima de nós. Um elo entre o mundo particular, feito de mistério, e grande compreensão do artista para com o homem – o homem simplesmente – sedento em contemplação, diante de profundo e gigantesco poço. Assim são os homens diante da arte, do belo, do horrendo da vida. […] Enfim, Carmélio volta para mais uma vez nos abrir novas janelas, e, quem sabe, alguma porta…

Texto de Beth Menna Barreto Mattos Carmélio Vai Voltar – (p.72) REVISTA DO GLOBO  N°905  Segunda Quinzena – agosto de 1965 –

Arquivos do tempo

Cartas...

Cartas seguem como documentos de uma época. Registro. Debaixo de cada palavra mil outras empilhadas. Uma luz, uma mágoa. Uma carta…

Esta é para Neli, mulher do ator Alberto Ruschel –  famoso filme, O Cangaceiro.

“Porto Alegre, 23 de abril de 1951.

Minha querida Neli – quero ver se consigo te escrever uma carta a máquina. Há tanta coisa para te contar que a máquina devia ser o meio mais indicado para andar depressa, como gente moderna no trabalho de escrever. Acontece que eu sou ignorante e burra. Nunca me disseram que o barulho que a dita faz tem o encanto igual ao da chuva batendo no portal da casa da gente nos dias de ansiada solidão. A chuva, fecha mais a porta aos intrusos  e nos isola da maneira desejada na companhia dos que tem têm verdadeiramente interesse e amizade na gente. A máquina é parecida com a chuva quando se escreve – para uma amiga, não é… Ela vai pinçando, mais devagar ou mais depressa, como o bater do coração doente, no ritmo desigual, as palavras que devem ser ditas e assim desenhando o pensamento, e isolando todos os outros ruídos da atenção. Como sabes, nada, ou quase nada tem saído direito desde que voltei (…) Anita