Correspondência e saudade

Iberê, meu amigo querido:

Tens razão. As dificuldades nos impossibilitam de sermos como gostaríamos de ser, normais, suaves, intensos, alegres, esperançosos. Perdemos a dimensão do normal. Desconfiança. Inviabilidade nas relações? Tudo perturba o julgamento. Políticos, ou apolíticos. Vivos, mas imprestáveis. E sem calçadas. Vivemos murados, imersos em pânico.Trancada na escola, manhãs, tardes envolvida com alunos. O imediato comando de fazer, seguir, avançar. Não sucumbir.O povo, mesmo na arena, está feliz. E o imperador se diverte. E o Brasil segue manso na cordialidade. Aceitação. Não compreendo, também aceito.A morte como notícia certeira desencaminha a alma. Quando a mãe morreu, o luto se agarrou em silêncio estranho. Larguei de sorrir. Agora, com a morte do pai apertei o coração, não chorei. Aceitei. Para morrer paramos de beber água, de comer, e sofremos. Morrer seria isso mesmo, desistir?

Não te acomoda. Não desanima. Não sofre meu amigo. Não adoece. Não desiste. Valerá disponibilizar meu espaço, a intimidade por talentos? Ou eram dinheiros? Gosto de lembrar das parábolas. Estou sempre a fugir. Pedro voltou, definitivamente, para o Rio. Tenho dor de ausência. Depressão doença que me ameaça também. Trata de te afastar deste desânimo. E pinta mais e mais. Esquece a dor. Quero te ver, mas sinto-me amarrada nesta casa, presa na minha inquietude. Também ao trabalho. A tempestade não nos arrancou deste lugar. Um beijo.

“Porto Alegre, 14 – 1 – 90 

Caríssima Beth 

A vida neste país é uma estafante corrida de obstáculos cada vez mais difíceis de transpor. Estamos sobre uma gigantesca esteira rolante, cuja velocidade aumenta sem parar, até a vertigem. Somos, então, jogados para fora, sem braços, sem pernas, sem cabeças como bonecos imprestáveis. Se não erro é o próprio governo que toca a manivela. E dizer como se diz que não chegamos a “hiper” inflação. A mentira é a moeda corrente. Que loucura! Que desgraça!  

Não conheço quem possa alugar o teu apartamento em Torres. Pelo que sei os argentinos estão debandando, estão vendendo os apartamentos que compraram no tempo das vacas gordas. Eles também estão sem “plata “. A Argentina vai tão mal ou pior do que este nosso Brasilzinho. 

Beth, não sabia que teu pai houvesse falecido. Eu sinto muito, sinto muito por ti. O Pedro não me telefonou, como havia prometido. Gostaria de saber como ele foi de vestibular.  

Eu atravesso uma fase de muita depressão, de grande desencanto. Tenho me esforçado para ser rijo, para permanecer de pé no convés do navio da vida. 

Li que Santa Cruz do Sul foi açoitada por tremendo temporal. Fiquei preocupado. Espero que não tenham sofrido nada, que a casa esteja intacta. Manda dizer algo. Espero que venham a Porto Alegre. Quero muito te ver. Entende? Afetuosos abraços do amigo de sempre o Iberê.”

 

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