Torres, 5 e junho de 2015. A sexta-feira que estica o feriado de ontem, e desemboca num fim de semana comprido. Sol, temperatura perfeita. Azul. Cinza também, e muito verde. Amiga, este fio de correspondência me acende. Ou melhor, apaga a depressão que carrega o meu fazer lento, descuidado.
Bem sabes que me estendo no desânimo. Puxa meu corpo, arrasta. Fico encolhida na cama, releio a mesma página, e vou patinando sobre uma mesmice doente, não encontro sentido. E o amado amor, as vozes, as pessoas, velhos amigos se desdobram em elos estrangeiros, escorregadios, assuntos mortos. Um fio suspenso agita as inquietudes dos filhos, mas logo se encaixa na boa canaleta. Desligo telefones, desvio atenção, ou conselho, escuto música. Arrumo outra gaveta. E resolvo te escrever.
Tua expressão atenta, sorridente, o brilho dos teus olhos. E as roupas que usas, gosto. Pensar no chá, nos biscoitos, e na conversa que se estica quando estamos juntas, bom. Exatamente a peça certa, o jeito leve, sóbrio, e o cabelo natural. Livre. Teu sorriso, a leveza da voz modulando as confissões mais urgentes que guardei para te contar. E esta danada memória que se mistura brejeira com visitas acesas, esquecimentos tumultuados, leituras aos saltos, interrompidas, e discursos longos.
Quero montar o quebra-cabeça. O que posso lembrar da casa, da convivência, do pai, dos tios, desta vida cheia de reticências que eles levaram, ou que foram, ou são na memória? Um jogo. Transito por revelações sombrias, amorosas que podem ser inventadas.
Quando penso em autobiografia, traço um esboço da casa, daquelas pessoas que entravam, saiam, ficavam, das empregadas, da limpeza, do estético, da elegância da mãe. O café preto, o cigarro, as bandejas, os quadros, as cortinas, e as lareiras acesas. No verão, tínhamos Torres e as balsas. O incomum se agita. Penso, principalmente, na Anita que não conheceste. Rebelde, anestesiada destas baboseiras da vida do corretamente adequado. A minha mãe, personagem forte, arrimo, certezas. O tempo se agitava passando pelos seus dedos acolhendo os outros tempos, reunidos num mesmo palco. Sentada na ponta do sofá, desenhava, escrevia, silenciosa abria revistas, escutava Beethoven naqueles discos pequenos! Depois conversava, falava, opinava sobre tudo. Pontuava. Sorria. Transgredir talvez fosse a palavra certa, a posição corajosa de recuar aqui, e seguir ali por cima das pedras, escorregando, mas seguindo. Não olhar para trás, mas entender o perigo, aceitar o açoite, e ficar. Deixar a água correr.
Bambus podem ser a cerca perfeita. Ouve-se a voz do outro lado, vemos sombras, mas permanecemos separados. Os vizinhos não invadem. Seguem debruçados, conversam, falam, soltam foguetes, festejam, não prestamos atenção.
Pai e mãe em leituras, em conversas agitadas por discussões, e opiniões, protegem o feudo. Tecer com cuidado. Posso dizer, aplicado?
Amiga. Eu te imagino, vejo, trabalhando, estudando, e mesmo no lazer, evolução, revolução. No caminho certo, na contramão. Nenhuma mesmice. Enquanto te escrevo idealizo a coragem, imagino o novo, e tenho certeza, vejo luzes e assertivas. Aproveitem Buenos Aires! Respirem São Telmo, não esqueçam das livrarias, nem das cafeterias. Claro as casas de chá, os doces. Lembro das vitrines perto do Hotel Alvear. O luxo. O bom gosto. Caminhar pelas calçadas de Buenos Aires!
Preciso terminar o livro de Yusunari Kawata, KYOTO.
Volto a te escrever amanhã.