Chuva contínua batendo nas vidraças, numa fala ininterrupta. Escuto. Já é terça-feira. A carta que te escrevi mentalmente foi no domingo. Fazia sol, quase quente o inverno torrense. Segui o rastro da maresia. Sai das dunas, atravessei o arvoredo de espatódeas floridas e amendoeiras esparramadas rumo à nova cidade. Torres enormes apontam. Vazias. Casas fechadas. Recolhidas porque é inverno. Gramados aparados. Um carro, outro, uma moto. Duas pessoas. O cachorro e eu. Hibiscos na divisória de terrenos baldios. Pouco, nenhum vazio por aqui. O vazio guarda- se no peito. Cresce adubado pra florir. O meu tem camélias. Vazio interno que habita as pessoas, colorido. O lugar físico foi tomado, povoado. Explosão imobiliária. Pelas calçadas irregulares sigo com os olhos velhos paralelepípedos. Gosto deste calçamento heroico.
O mar naquele verde acinzentado, pestanudo, penteado com espumas brancas. Areia fina, endurecida. Sinto vontade de avançar e beber água salgada. Gaivotas. Pedras, as nossas falésias!
Sinto não ter janelas frente ao mar. Pesqueiros amanhecendo no horizonte. O cheiro, a maresia. Areia fina grudada nos vidros. E o som do vai e vem. Fluxo como se fosse o centro de capital: carros e pessoas, mas não é, apenas o mar e o vento. Agito. O som sacode o corpo. Não há silencio por aqui…



Gostei mesmo… John Cage (música e polemizador) dizia que nós humanos não conhecemos o silêncio, pois sempre há um ruído: ele fez um experimento ficando horas numa câmara isolada e mesmo assim “ouviu o som de alta frequência do sangue correndo nas veias e de baixa frequência do bater do coração”… Poema em prosa…