A carta roubada de Edgar A. Poe, a referência. Teia sem aranha. A sala? Sempre abarrotada de livros, desordem colorida, a minha. Flores perfeitas. Objetos inusitados e o detalhe das mantas e almofadas aquecem a informalidade. Tapetes são infância, estanho o casamento. Porcelanas, minha mãe. Quadros: acidentes coloridos. Café da manhã, o meu pai. Tia Joana, o meu quarto. Livros de arte/com arte: gravuras e recortes. Pilhas de papel. Copos de cristal, eu gosto. E leituras interrompidas. Por que não estou em Paris? Pelo mesmo motivo de não estar em Portugal, nem em Berlim, não conhecer os Estados Unidos da América, nem a Rússia, nem o Alasca, nem a Noruega. Lamento não ter ido/visitado a Amazônia legal, ou Alagoas, ou Belém, ou ter voltar a Belo Horizonte, revisitado as pequenas cidades históricas. Estar em Limoges outra vez. Algumas perguntas conseguem mesmo desestabilizar. Remexem noutras memórias. Desejos ocultos, fracassos, escolhas malfeitas, e a magoa da vida volta. Como forçar a cabeça dentro de uma bacia com água e simular afogamento, tortura ocasional (se é que tortura pode ser ocasional, e o veneno acidental). Não somos o possível do sonho do outro, somos tão absolutamente todas as nossas próprias mentiras. Somos o esconderijo. Maluca lógica do disfarce, do medo, da covardia e do intenso. Sabes do que estou lembrando? De uma noite de mudança, quando as caixas chegaram de Porto Alegre e eu fiquei aturdida e aliviada: desarrumada (é verdade), mas a tristeza da perda se misturou ao bom do teu encontro, então eu me achei, absolutamente, encontrada comigo mesmo, e aliviada. Te joga na cama, mereces! Foram tuas palavras. Estou lembrando das tuas palavras apressadas e escondidas, do teu desvendar já te despedindo (e eu não sabia), da tua resiliência e da minha surpresa. Do homem que não vou reconhecer/conhecer, do menino que escapou da minha memória. E me atropelou. Estou a lembrar desta tua lembrança ardida enquanto temperavas a carne, e do meu descaso comigo mesma, das minhas inumeráveis desistências. Eu lembro que pontuavas minhas palavras com o jogo inteligente e astuto da tua imprecisa e certeira memória. Desenhavas limites. Ainda uma vez/ tantas oportunidades, nós as tivemos!?, ou nunca cruzamos a mesma calçada. Não estou onde deveria estar, e não temos uma rodoviária, um aeroporto, nenhum lugar de passagem para tomarmos o nosso prometido café. Sinto saudades tuas. Não adianta / não importa. Envelheço a cada amanhecer de maneira tão avassaladora! E para tuas mãos, para teu olhar eu teria que guardar a beleza da mulher, todas as voltas do corpo e me vestir devagar como se fosse ao som de Schubert (o quinteto para cordas). J.M. Coetzee idealizou/desejou fazer amor, eu penso nos gestos que nos levariam a loucura certa, na verdade aquela ideia maluca do amor nudez… nem sempre, o depois pode ser também avassalador. O sexo tem voltas repassadas / ultrapassadas / fantasiadas no olhar aberto ao ritual da desconstrução. Ah! Que saudade tenho / sinto das conversas desalinhadas e intensas, picadas, perfumadas pelos odores do verão. Vontade de ficar extasiada outra vez com as revelações e as entonações, as tuas insônias aconchegadas nas minhas insônias. O teu proibido viver esticado e misturado com minha liberdade. A minha vergonha com teu jeito desavergonhado e profano. Livre. Tuas escolhas abertas com minha vida oscilante de empurrões. Saudade de nós dois, deste ápice de te amar escondido. Elizabeth M.B. Mattos – setembro de 2019 – Ainda em Torres.