transplantar e adubar

“Há uma vida anônima correndo no sangue de muita gente hoje em dia, uma consciência do mal, uma inclinação para o tumulto, uma desconfiança contra tudo o que é respeitado. Há pessoas que se queixam de falta de idealismo da juventude, mas no momento em que precisam agir, agem como alguém que, desconfiando de uma ideia, reforça o débil poder persuasivo dela com uso de um porrete. Em outras palavras: existirá algum objetivo piedoso que não se precise munir de um pouquinho de corrupção e cálculo, vindos das mais baixas qualidades humanas, para que o levem a sério neste mundo? Palavras como amarrar, forçar, encostar na parede, botar para quebrar, método de força tem um agradável tom de confiabilidade. Ideias como a de que o mais nobre dos espíritos, metido numa caserna, em oito dias aprende a saltar sob as ordens de um sargento, ou de um tenente e dez homens bastam para prender qualquer parlamento do mundo, só mais tarde encontraram sua expressão clássica, quando se descobriu que com algumas colheres de óleo de rícino dadas a um idealista se expõem ao ridículo as mais inabaláveis convecções; mas já há muito rejeitadas com indignação, tinham o selvagem impulso de sonhos sombrios. Acontece que pelo menos o segundo pensamento de toda pessoa colocada diante de um fenômeno arrebatador, ainda que o arrebate pela beleza, é hoje em dia: você não me engana, darei um jeito em você! E essa fúria de rebaixamento de uma época não apenas enlouquecida mas enlouquecedora, já não é praticamente aquela divisão, natural na vida, entre bela e fera, mas antes um ato de autoflagelo do espírito, um indizível prazer no espetáculo que é ver o bem rebaixando-se e deixando – se destruir com espantosa facilidade. Não é muito diferente do que um apaixonado apanhar-se-a-si-mesmo-mentindo, e talvez não seja a coisa mais desoladora de todas acreditar num tempo que nasceu ao contrário, e apenas precisa que as mãos do Criador o virem” (p.220) Robert Musil O Homem sem Qualidades – Sem comentários: texto denso / a ser repensado e relido e fatiado depois do susto! Torres – janeiro de 2022

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