A vida se mistura na fantasia. Estamos, nós os dois, a sonhar amarrados na realidade que é o dia pelo avesso, aquele em que nós dois não estamos. E, na fantasia da fantasia nos debruçamos. Sinto trepidar o que antes chamei de amor, paixão. Não somos nada que possa ser desenhado por um modelo daquilo que já vivemos. Isto é curioso. Depois, estamos a brincar. Do outro lado está a vida. Estaremos, tu e eu, preparados para olhar, de frente, a vida tal qual é descrita: comum. Lisa, arranhando aqueles estreitos conceitos que o cotidiano traz, a evidência. Teremos, tu e eu, o sentido exato destas coisas que nos saltam? Poderei tocar e cantar? Tu queres fazer o que nunca consegui fazer. Eu quero apenas que emagreças e dances comigo corpo colado no corpo. Exatamente numa mutação que estes quarenta e cinco anos nos trazem. Presos ao prazer de termos pai e mãe, uma rua chamada Vitor Hugo, sapatos solados com borracha, e, outra vez a fantasia. A história confidencia a necessidade premente de não apenas tocar ou conhecer o outro, mas transpor a barreira, conhecer o avesso. Se eu te toco não sou eu, se me tens, sou a outra, a menina perdida em Petrópolis, encontrada em São Paulo. Sobrevivente do Rio de Janeiro. A feiticeira, a mágica dos gestos repetidos. As lembranças perdidas. O cheiro da casa, o canto, o piano, o mistério escondido na memória. As marcas feitas com dor, agora prazer. Pensaste, exatamente, no que tudo isto pode significar se chegarmos a tocar piano, isto é, a fazer a música que está lá dentro? Dentro de nós, os dois? Poderei eu, a Beth, substituir o meu ardido desejo de escrever, escrever e dizer o que se amontoa na alma e nunca sai? Minhas dívidas com Iberê Camargo? Com Paulo Hecker Filho e ou com Flávio Tavares, aonde colocarei? Em qual acorde? Selarei este meu diabólico e insano desejo de ser o que se pode dizer na palavra, depois riscar, reescrever. O lido e decodificado papel, não as teclas do piano. Lerias as histórias escritas enquanto eu dedilhava o piano de Dona Ondina num ir vir notas e solfejos? Que ao menos eu esteja em ti! Escuto a música.
Conversei com P, ele me ouviu, paciente. Ainda sinto um peso, desânimo a cada palavra. A voz sai pesada, ou presa. […] O que nos angustia e agita? O que nos faz permanecer? A liberdade. Enquanto dormes solto e pesado, eu escrevo trepidando, ansiosa. Eu te quero tanto! Que o caminho vá se fazendo pelas pedras. Que os pés não sangrem na caminhada. Assim, poderás beijá-los. Eu também poderei beijar os teus pés no lento, mole e morno caminhar que tanto necessitamos! Que o prazer nos toque no lugar certo. Vou tentar fechar os olhos. Elizabeth M.B. Mattos -18 de dezembro de 2004 – Porto Alegre