Nunca hei de saber se contou a história a minha mãe.

Termina aqui a narrativa de Trápani, com quem jamais voltei a encontrar-me. Na história dessa mulher que ficou só e que confunde seu homem, seu tigre, com aquela coisa cruel que lhe deixou, a arma dos seus feitos, creio entrever um símbolo ou muitos símbolos. Juan Muraña foi um homem que pisou minhas ruas familiares, que soube o que sabem os homens, que conheceu o gosto da morte, que foi depois um punhal e agora a memória de um punhal e amanhã o esquecimento, o comum esquecimento.” (p.60) Jorge Luis Borges O informe de BRODIE

Borges ditou seus escritos, sua obra que nunca termina. Não vai terminar porque se movimenta com intensidade, leveza, quase cruel / obsessiva ou, apenas, magnífica! Eu volto ao mesmo, a memória da memória pequena, porque, tola / descuidada. Esquisito ficar a querer, ou a imaginar o possível de continuar… Continuar exatamente o quê? Sigo, assim, às cegas, sem nunca ter visto / sentido o mundo como ele é. Apenas imaginei, e vejo fadas, príncipes, duendes. Caminho pelo subterrâneo, pelo interior da terra que equivale ao interior do corpo humano, e por toda a rede secreta por onde circula o ar e a água da imaginação.

Como el dormir, el cuento de hadas nos libera del imperio de la necessidad.

Era uma vez, o rito mágico necessário. Era uma vez uma menina curiosa, intrigada, amorosa e inquieta, que de tanto ir e vir / sair e entrar / perseguir e dividir, não cresceu, ficou, para sempre menina. Não cresceu porque o mundo lhe causou susto! Menina-velha. Velha, inquieta e assustada. Agora, ela escuta a terra, os pássaros e vê sinais no céu. Não é loucura, mas presença. Um emaranhado de vozes que contam/explicam/desenham um hoje colorido.

Agarrava-se a mim como alguém que sente o abismo sob os pés. […] Talvez a gente só viva uma hora dessas uma vez na vida, e entre milhões de pessoas só uma tenha essa experiência – e sem aquele tremendo acaso eu jamais teria imaginado com que ardor, com que desespero, com que incontrolável avidez um ser humano perdido suga mais uma vez cada rubra gota de vida, e vinte anos depois, longe de todas as demoníacas forças da existência, eu jamais teria entendido como a natureza por vezes se concentra em alguns poucos momentos, grandiosa e fantástica, em seu calor e frio, morte e vida, encanto e desespero.” (p.63-64) Stefa nZweig 24 HORAS NA VIDA DE UMA MULHER

Qualquer lembrança se afoga naquela específica memória: a de uma escolha definitiva, não tem volta. Afagada, sufocada sobrevivi como que revivi, retomei, ressuscitei a jovem que tinha cumprido o rito, e agora, finalmente, se libertava. O meu pai segurava o meu punho, e a mão inteira enquanto caminhávamos pela praia, foi ele quem me disse: ‘Agora, minha filha, estás livre para escolher o jeito / o modo / o caminho, não precisas mais te curvar a vontade de ninguém, e já cumpriste todas as obrigações impostas, serão apenas as obrigações escolhidas que te conduzirão.” Os meus olhos ardiam com lágrimas, e aquele verão em Torres se desenhou enfeitiçado pela liberdade, o sonho. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

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