“Os tempos em que ela viverá serão os piores da história. Irá ver pelo menos duas guerras ditas mundiais e sua sequela de outros conflitos se reacendendo aqui e ali, guerras nacionais e guerras civis, guerras de classes e guerra de raças, e mesmo, em um ou dois pontos do mundo, por um anacronismo que prova que nunca nada termina, guerra de religião cada qual contendo em si suficientes centelhas para provocar conflagração que tudo levará de roldão. A tortura, voltará a ser realidade. A proliferação da humanidade desvalorizará o homem. Meios de comunicação transbordarão sobre o mundo, com visões e ruídos fantasmas – religião alguma jamais foi acusada de difundir ópio do povo mais insidioso. Uma falsa abundância, dissimulando a crescente erosão dos recursos, distribuirá alimentos cada vez mais adulterados e divertimentos cada vez mais gregários, panem et circenses de sociedades que se acreditam livres. A velocidade, anulando distâncias, anulará também a diferença entre os países, arrastando os peregrinos do prazer por toda a parte, para as mesmas luzes e sons fictícios, os mesmos monumentos hoje em dia tão ameaçados quanto os elefantes e as baleias, um Partenon que se pulveriza e que propõem colocar sob uma redoma de vidro, uma catedral de Strasbugo corroída, uma Giralda sob um céu que não é mais azul, uma Veneza apodrecida pelos resíduos químicos. Centenas de espécies animais, que tinham conseguido sobrevier desde a juventude do mundo, serão dentro de alguns aniquiladas por motivos de lucro e por brutalidade; o homem arrancará seus próprios pulmões, as grandes florestas verdes. A água, o ar, e a protetora camada de ozônio, prodígios quase únicos que permitiram a vida na terra, serão maculados e esbanjados. Afirma-se que, em certas épocas, Siva dança sobre o mundo, abolindo as formas. O que hoje dança sobre o mundo é a idiotice, a violência e a avidez do homem.” (p.342-343) Marguerite Yourcenar ARQUIVOS DO NORTE (tradução de Tati de Moraes – Editora Nova Fronteira