Corre, raio de rio, e leva para o mar

CORRE, RAIO DE RIO, E LEVA AO MAR

Primeiro Tempo

Fui ver o mar quando cheguei.

Aberto! Perfumado, inquieto!

Barulhento. Colorido.

O frio, contudo, não me permitiu molhar os pés.

Na casa, aproveito o calor e o fogo alto da lareira. Cozinho o pinhão e o feijão do jeito que têm de ser feitos.

O café, sem pães nem geleias açucaradas.

No fim da tarde, caminho pela cidade.

Que bicho mais louco é o homem! Depredador, nocivo, cruel.

O mar com areia e pedras. A Ilha dos Lobos.

A Lagoa do Violão, sem aguapés: poluída.

O rio Mampituba, escuro, botos seguindo cardumes; o mesmo rio. Os molhes que facilita a entrada dos barcos…

Daquele lado eu gosto, o cheiro é outro: barcos pesqueiros, canoas. Lembro a vida do começo da barranca.

Os molhes: mar e rio juntos.

Beleza importa, sim. Não a das pessoas, mas dessa natureza que sobrou. Essa, pode ser beleza.

É um equívoco, a cidade.

Como fez frio! Meus sonhos de Cambará do Sul e São José dos Ausentes na sombra. Será que eu quero a neve? Será que eu ainda quero alguma coisa?

De volta para casa estico as pernas no balanço da varanda. Pelo envidraçado, vejo objetos que se movimentam pelo chão: meias, copos, garrafas e livros; ou imagino esta dança? Se estivesses comigo! Certamente, tudo estaria arrumado…

  A casa está numa desordem permanente.

Sigo com as pernas esticadas, pensando em abrir a última garrafa de vinho, comer o último pedaço de peixe, e as últimas uvas que sobraram no pote verde.

Levanto para buscar o que vou comer.

*

Tenho que encontrar os documentos; o corretor deve pegá-los logo, examinar. Preciso entregar o imóvel ainda esta semana, inclusive, já reservei o hotel.

— E tu não estás aqui para me ajudar!,pondero.

— Se me perguntares como consigo tirar as coisas das gavetas, das caixas, eu não saberei te responder.

Volto aos papéis, documentos, inquietações, fotos, desânimo. Esquisito, isto tudo faz trânsito pelo chão. O meu mundo aberto, no tapete, grudado nas portas, como se os lembretes fossem solução.

Quando a noite chega e o lobisomem aparece, vou para a cama: durmo, durmo, durmo. Não faço nada. Estou doente.

Estas sucessivas mudanças adoecem meu espírito e o meu corpo.

*

Choveu e ventou a noite inteira. Separei alguns vasos em caixas de plástico, tudo o mais está pronto.

Que manhã escura! A chuva e o movimento sacudido das samambaias arrastam o verde. Retirei as avencas das frestas, elas, como eu, detestam vento.

Este ritual de caixas oprime. A escassez oprime.

Oprime o desejo contido. A cópia, o modelo estereotipado. Oprime o diabo do espelho. Oprime o segredo, a preguiça. As incapacidades, as ilusões frustradas, a idiota vaidade. Este mesquinho egoísmo e esta opaca mediocridade.

Oprime não termos a compreensão nem o espetáculo inteiro, só o palco do teatro. Vazio. As diferenças de linguagem. Por que não aceitar o prazer de estar outra vez em movimento?

O homem chegou com o caminhão, o corretor, e com os novos proprietários. Todos aguardam o som da minha voz. E, o pijama apertado escandaliza pela hora avançada do dia. Ninguém fala, então o motorista grita o endereço e pergunta se pode começar a recolher a mobília. Eu abro a porta por inteiro.

SEGUNDO TEMPO

Escurecia, quando terminei de colocar o que restava na minha caminhonete.

No quarto do hotel, portas-janelas abertas: o mar, a montanha. O preto da noite. Aquietei-me bebendo e fumando, e disse pro silêncio o que restou.

O silêncio. A possibilidade de ler. Estudar o que posso estudar. Aceitar o limite de ser apenas mulher comum. Mulher igual a todas as outras mulheres comuns.

Falsificar lembranças, explicar o isto e o aquilo. Não há necessidade. Limito-me a esquecer.

Não vou me afobar nem me afogar.

Afinal, não importa o palco, mas o espetáculo inteiro.

Então, encontrar a casa é o fazer perfeito: aquela onde perdemos e achamos coisas, cheiros, onde o gato entra. A invenção inteira.

Não um quarto de passagem.

*

Escritores usaram esse método – masmorra, para poder pensar e escrever sem distrações. Pessoas e coisas nos atrapalham no pensar e interiorizar o que somos. Beijo, sexo, carícia, chocolate, morangos e álcool; tudo o mais desgasta. Perde-se o tempo de crescer, de ser alguém. A escravidão.

Depois, tudo repetido, nunca o original. Se existe o único, é o autismo. Será que eles têm, tiveram razão? Quando escrevem estão inteiros na loucura. Verdade e fantasia e loucura.

Então o menor quarto, a menor casa, os mares sonhados, ruidosos, mutantes, o terreno.

A segunda garrafa. A segunda noite. A segunda voz.

Tropeçamos nas coisas, e na ignorância de nós mesmos, paradoxalmente imóveis. Falta atenção, cuidado com nosso próprio sentimento!… Ficar, assim, com joelhos esfolados!

Convicções.

O jogo das leituras. Essas pequenas parcerias possíveis!

Abro as últimas folhas da história que precisa ser lida, e vou assinalando equívocos em vermelho.

A mão que se estende, exige troca.

Não há surpresa amorosa, nas pessoas.

Revólveres, granadas, venenos e torturas.

Nada de flores. Pão ou leite.

Nenhum perfume.

O fétido das ruas.

*

É melhor vender a casa.

É melhor o quarto do hotel, despojado, o mar.

Elizabeth M.B. Mattos – (velhos textos) setembro de 2022 – Torres

Corre, raio de rio, e leva ao mar

A minha indiferença subjetiva!

Qual “leva ao mar”! Tua presença esquiva

Que tem comigo e com o meu pensar?

1

1 541.3 III, Barrow-on-furness. Poesias de Álvaro de Campos, Ficções do Interlúdio. Obras Completas de Fernando Pessoa. Editora Nova Aguilar, 2001.

2 comentários sobre “Corre, raio de rio, e leva para o mar

  1. Oi, minha querida Beth. Ler os teus textos, ver as tuas fotos de flores e de livros, tudo tão lindo, me dá uma sensação de familiaridade, de uma intimidade feita de uma identidade absoluta do ser misterioso que és em mim. A evanescência do agora é bem o lugar de onde tudo isso provém e tudo vem do mesmo lugar de onde provenho.

    • Temos, é verdade, uma intimidade de muito e tanto tempo inexplicável ou toda enrolada num amor tão nosso! guardado! Com certeza escrevo para chegar perto, com certeza conversamos cada vez que eu começo a teclar, e, tu acompanhas! Não é pouco isso, é muito muito muito

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