(Elizabeth M.B. Mattos)
Primeiro Tempo
Fui ver o mar quando cheguei.
Aberto! Perfumado, inquieto!
Barulhento. Colorido.
O frio, contudo, não me permitiu molhar os pés.
Na casa, aproveito o calor e o fogo alto da lareira. Cozinho o pinhão e o feijão do jeito que têm de ser feitos.
O café, sem pães nem geléias açucaradas.
No fim da tarde, caminho pela cidade.
Que bicho mais louco é o homem! Depredador, nocivo, cruel.
O mar com areia e pedras. A Ilha dos Lobos.
A Lagoa do Violão, sem aguapés: poluída.
O rio Mampituba, escuro, botos seguindo cardumes; o mesmo rio. Os molhes que facilita a entrada dos barcos…
Daquele lado eu gosto, o cheiro é outro: barcos pesqueiros, canoas. Lembro a vida do começo da barranca.
Os molhes: mar e rio juntos.
Beleza importa, sim. Não a das pessoas, mas dessa natureza que sobrou. Essa, pode ser beleza.
É um equívoco, a cidade.
Como fez frio! Meus sonhos de Cambará do Sul e São José dos Ausentes na sombra. Será que eu quero a neve? Será que eu ainda quero alguma coisa?
De volta para casa estico as pernas no balanço da varanda. Pelo envidraçado, vejo objetos que se movimentam pelo chão: meias, copos, garrafas e livros; ou imagino esta dança? Se estivesses comigo! Certamente, tudo estaria arrumado…
A casa está numa desordem permanente.
Sigo com as pernas esticadas, pensando em abrir a última garrafa de vinho, comer o último pedaço de peixe, e as últimas uvas que sobraram no pote verde.
Levanto para buscar o que vou comer.
*
Tenho que encontrar os documentos; o corretor deve pegá-los logo, examinar. Preciso entregar o imóvel ainda esta semana, até já reservei o hotel.
— E tu não estás aqui para me ajudar!,pondero.
— Se me perguntares como consigo tirar as coisas das gavetas, das caixas, eu não saberei te responder.
Volto aos papéis, documentos, inquietações, fotos, desânimo. Esquisito, isto tudo faz trânsito pelo chão. O meu mundo aberto, no tapete, grudado nas portas, como se os lembretes fossem solução.
Quando a noite chega e o lobisomem aparece, vou para a cama: durmo, durmo, durmo. Não faço nada. Estou doente.
Estas sucessivas mudanças adoecem meu espírito e o meu corpo.
*
Choveu e ventou a noite inteira. Separei alguns vasos em caixas de plástico, tudo o mais está pronto.
Que manhã escura! A chuva e o movimento sacudido das samambaias arrastam o verde. Retirei as avencas das frestas, elas, como eu, detestam vento.
Este ritual de caixas oprime. A escassez oprime.
Oprime o desejo contido. A cópia, o modelo estereotipado. Oprime o diabo do espelho. Oprime o segredo, a preguiça. As incapacidades, as ilusões frustradas, a idiota vaidade. Este mesquinho egoísmo e esta opaca mediocridade.
Oprime não termos a compreensão nem o espetáculo inteiro, só o palco do teatro. Vazio. As diferenças de linguagem. Por que não aceitar o prazer de estar outra vez em movimento?
O homem chegou com o caminhão, o corretor, e com os novos proprietários. Todos aguardam o som da minha voz. E, o pijama apertado escandaliza pela hora avançada do dia. Ninguém fala, então o motorista grita o endereço e pergunta se pode começar a recolher a mobília. Eu abro a porta por inteiro.
SEGUNDO TEMPO
Escurecia, quando terminei de colocar o que restava na minha caminhonete.
No quarto do hotel, portas-janelas abertas: o mar, a montanha. O preto da noite. Aquietei-me bebendo e fumando, e disse pro silêncio o que restou.
O silêncio. A possibilidade de ler. Estudar o que posso estudar. Aceitar o limite de ser apenas mulher comum. Mulher igual a todas as outras mulheres comuns.
Falsificar lembranças, explicar o isto e o aquilo. Não há necessidade. Limito-me a esquecer.
Não vou me afobar nem me afogar.
Afinal,não importa o palco, mas o espetáculo inteiro.
Então, encontrar a casa é o fazer perfeito: aquela onde perdemos e achamos coisas, cheiros, onde o gato entra. A invenção inteira.
Não um quarto de passagem.
*
Escritores usaram esse método – masmorra, para poder pensar e escrever sem distrações. Pessoas e coisas nos atrapalham no pensar e interiorizar o que somos. Beijo, sexo, carícia, chocolate, morangos e álcool; tudo o mais desgasta. Perde-se o tempo de crescer, de ser alguém. A escravidão.
Depois, tudo repetido, nunca o original. Se existe o único, é o autismo. Será que eles têm, tiveram razão? Quando escrevem estão inteiros na loucura. Verdade e fantasia e loucura.
Então o menor quarto, a menor casa, os mares sonhados, ruidosos, mutantes, o terreno.
A segunda garrafa. A segunda noite. A segunda voz.
Tropeçamos nas coisas, e na ignorância de nós mesmos, paradoxalmente imóveis. Falta atenção, cuidado com nosso próprio sentimento!… Ficar, assim, com joelhos esfolados!
Convicções.
O jogo das leituras. Essas pequenas parcerias possíveis!
Abro as últimas folhas da história que precisa ser lida, e vou assinalando equívocos em vermelho.
A mão que se estende, exige troca.
Não há surpresa amorosa, nas pessoas.
Revólveres, granadas, venenos e torturas.
Nada de flores. Pão ou leite.
Nenhum perfume.
O fétido das ruas.
*
É melhor vender a casa.
É melhor o quarto do hotel, despojado, o mar.
Corre, raio de rio, e leva ao mar
A minha indiferença subjetiva!
Qual “leva ao mar”! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?1
***
1 541.3 III, Barrow-on-furness. Poesias de Álvaro de Campos, Ficções do Interlúdio.Obras Completas de Fernando Pessoa. Editora Nova Aguilar, 2001.