fio esticado com luz

Obviamente, escrever cartas quase nunca é um ato inteiramente solitário. À excessão do nacisista, que na verdade escreve para si mesmo, o outro está sempre presente – uma fotografia sobre a mesa, uma flor seca entre as páginas de um livro, uma imagem guardada na memória -, esperando ser informado, corrigido, agradado – acima de tudo agradado. Como vimos, não há dúvida de que para a literatura do século XIX, modernizando Cícero, escrever uma carta era praticar um tipo de conversação. Mas seria uma conversa verdadeiramente espontânea? […] Qual o preço da sinceridade? Uma vez que alguém adquire conhecimento suficiente e experiência do mundo, as fórmulas usadas para agradar os outros se tornam uma segunda natureza, tão automáticas que não exigem hesitação ou reflexão. Contudo, isso não significa que uma fórmula habitual seja um gesto de hipocresia, uma emoção manipulada. Tampouco obscurece o espírito de quem escreve uma carta. […] Há uma pergunta antiga, só em parte engraçada: ‘Como posso saber quem sou antes de ler o que escrevi?’ Ela contem uma verdade importante: escrever cartas pode ser um exercícop de autodefinição. Por isso, qualquer que seja a forma dessas cartas, natural ou afetada, elas podem ser fragmentos de uma grande confissão.” (p.356-367) Peter Gay O Coração Desvelado – a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud

encantamento ou…

Não sei explicar, certas coisas acontecem surpresa, gentileza pura. Pois quero registrar, mas não sei. Surpreendem, ou enfeitam, ou…, pois é difícil de explicar, ou de contar. Como chuvaradas de verão: alagadas e perfumadas. Um dia tu acordas decidida, não vou deixar passar, vou resolver: Ônix vai enfrentar o banho, enfrentar (detesta). Resolvo e levo. Vou comprar sabão em pó, amaciante, detergente, trazer um suco, a bacia, coca-cola (em falta). E compro isso, mais aquilo e muito mais do que preciso, vira entrega…

Ah! Manhã agitada, quente e florida. Chegou a gentileza…, pura gentileza. Não tem idade, não tem jeito, é o gesto. O quebra-cabeça se acomoda, volta o calor! Céus! Reclamo. Nem explico, sinto. Aquece por dentro, enfeita, ilumina… O encanto escorrega. Guardo. Elizabeth M. B. Mattos – março de 2023 – Torres

desorienta / empurrada…

Os pequenos e grandes textos, nos grandes gestos cansados, nas vontades desfeitas. Esta pressão de bobagens, de promessas emparedadas. Desejos desfeitos! Aonde escondi o desejo ardente que eu sentia/tinha por ti… Volta. Não me esquece. Estende a mão, ainda tenho dezoito anos: dança comigo. Elizabeth M. B. Mattos – agosto de 2022 – Torres

verão 2023

Explode a chuva. A rua transborda cheia desta luz aguada. Aguaceiro e sol. O brilho quente. Trópicos do asfalto. lagoa cinza… Flores nos canteiros redondos. E as tarturagas se espicham… Ah! Verão quente quente e quente… Eu espero que voltes, respondas, ou respires perto de mim… As histórias de sempre! Que calor! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2023 – Torres

aos poucos

vou largar o possível, o correto, vou deixar inverter: seguir tempo, sem ordem, uma azeitona de cada vez. Água com gás, silencio com soluço. Caminho lento, desgovernado, solto, livre – nenhuma coerência

os crimes sem sangue são empacotados em lógicas e metódicas respostas. O feito do envenenamento atravessa lento o coro da lagoa. Então, pelas mãos de crianças, ele mostra as tartarugas espichadas, leva para passear de carro a menininha e o gurizinho. Divide as balas e supõe que pode dormir – ou que está acompanhado, alguns infernos são limpos e a boa comida, o bom vinho, engana.

o desejo de agradar apaga vontade prazeirosa… amontoa-se com a vida / experências de equívocos, muitos traiçoeiros. a cada personalidade sua sobrevivência… eu sei o processo. apreendi calada, observando, e aplainando, nunca enfrentando… a pensar sobre estas questões, também ensino silenciosa, sem impor. Espalho no tapete as ideias que precisam ser costuradas

quando reviro as horas / faço do dia a noite, as horas se devoram estranhas… consigo girar girar no sentido inverso do tempo, rejuvesneço. Elizabeth M.B. Mattos março de 2023 – Torres

sair do palco

Sair do palco é a pacificação, sair, não como derrota, ou cansaço, ou sei lá o porquê de precisar sair, sair para festejar. Haja palco, luzes, vibração! Efeitos. Sair para fazer o que é preciso… Hoje, agora. Nem palco, nem platéia, deixa acontecer o espetáculo… A vida, o desafio natural: sobreviver parece uma palavra derrotada, não é… Encontrar a semente, plantar, pode ser? Elizabeth M.B. Mattos – março de 2023 – Torres

Em algum lugar estás, meu amado, estás. Porque ias chegar/ficar, então, estás. O pão, o perfume dos lençóis. Cantei para a alma sossegar, fiz exercícios de estar / ficar e te esperar! Interrompi as leituras obcessivas. Hoje, ansiosa. Deves voltar, voltar para sossegar, tu também! Mas eu te queria pra sempre, aquele todos os dias, dias inteiros, com direito ao tudo, ao todo… Ah! Sou gulosa! O equílibrio és tu.

as palavras mentem

De fato, não há/existe palavra verdadeira, todas estão fantasiadas e espreguiçadas numa dimensão pouco confiável. Mais conversamos / dizemos e explicamos, pior a verdade. Livros, documentos, leis começam a se amontoar num simulacro contínuo, e todos para ensair a verdade, a possível verdadeira verdade: agarrar uma certeza para colocar ordem no caos a que chamo de comunicação.

De fato os romances mentem – não podem fazer outra coisa -, porém essa é só uma parte da história. A outra é que, mentindo, expressam uma curiosa verdade, que somente pode se expressar escondida, disfarçada do que é. Dito assim parece um galimatias. Mas, na realidade, trata-se de algo muito sensível. Os homens não estão contentes com o seu destino, e quase todos – ricos ou pobres, geniais ou medíocres, célebres ou obscuros – gostariam de ter uma vida diferente da que vivem. Para aplacar – trapaceiramente – esse apetite surgiu a ficção. Ela é escrita e lida para que os seres humanos tenham as vidas que não se resignam a não ter. (Através da ficção eles – os homens – conseguem ter a vida que, em vida, não aceitam não ter – a negação da negação?) No embrião de todo romance ferve um inconformismo, pulsa um desejo insatisfeito. […] Isso significa que o romance é sinônimo de irrealidade? […] Nada disso. Convém pisar com cuidado, pois este caminho – o da verdade e da mentira no mundo da ficção – está semeado de armadilhas, e os oásis convidativos podem ser miragens. […] E nesses acréscimos sutis ou grosseiros à vida, nos quais o romance materializa suas obsessões secretas, reside a originalidade de uma ficção.“(p.16-17) Mario Vargas Llosa A verdade das mentiras

Ufa! Um desabafo. Por que estar sempre a explicar, ou voltar ao fato? O que aconteceu é objetivo. A narrativa se esfacela pelo caminho, as explicações resvalam em percepções e emoções diferentes! Não extamente mentirosas. Diferentes. Um copo de vinho, um dia ensolarado ou a chuva de uma tespestade, pronto, mudou. O ciúme brota onde nos sentimos insatisfeitos, inseguros (inseguros, exatamente, com o quê?)… Acredito naquilo que preciso acreditar com a mesma petulância que posso colocar em dúvida o sentimento de amor, raiva ou sei lá o quê. Os motivos desta ou daquela atitude se não foi pincelado, colorido, visualisado numa tela / num fixo efeito de ponto / de terminou, céus! a dúvida. Qual era/seria extamente o BOM término? A minha vida precisa deste ponto final? Pois é. Acho que não…Elizabeth M.B Mattos – março de 2023 – Torres

Foto de Pedro Moog