Uma das coisas esquisitas de envelhecer é distanciar-se da pessoa que fomos. Não digo que todos façam isto, todos não, porque alguns seguram o tempo no sonho contínuo de estar presente… Eu fui uma daquelas pessoas que se acotovelaram na vida. Resolvi os sentimentos, e tomei decisões na soleira da porta. O discurso se fez na emergência da situação. Alguns conseguem planejar, ordenar, obstinar-se num sonho definido, e percebem a Linha de Sombra, e atravessam, e se firmam com indivíduos inteiros, decididos, positivos. Realizar o sonho, ou melhor, descobrir com nitidez o sentido de ter a vontade, e assim, não se deixar levar aos solavancos, mas consciente exige da vida o espaço, e conquista esta vontade de alma… Como diz Conrad no livro Linha de Sombra: “Todas as estradas que levam ao que nosso coração almeja são longas.”
Voltando a Virgínia Woolf, esquece As Ondas. Se puderes lê Passeio ao Farol, mas se estás subindo A Montanha Mágica… Deixa para outro momento, eu adoro tudo que Thomas Mann escreve. As grandes damas da literatura esperarão por ti… Ainda tens Katherine Mansfield, ao menos o conto Felicidade, Jane Austen, a obra inteira. Emily e Charlote Brontë, Virgínia Woolf, Isak Dinesen, preciosos contos, ao menos A festa de Babette, Doris Lessing, pelo menos As Avós. Sei lá Ricardo! É uma roda constante de descobertas, sustos, pânico, prazeres e questionamentos. Acho que tens urgência em conhecer Bachelard… Procura os filósofos. E a vida é mesmo toda esta festa de gala, de uma noite, ou duas, ou… As leituras caminham soltas, não te prendas… Segue o teu coração, tua intuição, e logo terás novo prazer com Lolita; reler Bovary, quem sabe Proust? De qualquer forma, a cada novo texto que descobres e comentas tu me seduzes e corro para uma releitura, ou tardia leitura… Quem sabe leio A Divina Comédia, quem sabe Cervantes? É preciso disciplina. Eu sei. Bem, e aí fica o sentido de ter biblioteca, fazer uma biblioteca, usufruir de uma biblioteca, a tua, ou frequentar uma grande biblioteca… Elizabeth M.B. Mattos – janeiro 2013 – Torres
A citação pode ser o presente visto que todos o presente caminha por ideias, pelo afeto, pela imaginação…Leia A casa de Papel de Carlos Maria Dominguez.
“A biblioteca que se forma é uma vida. Nunca digamos uma soma de livros soltos. (…) O senhor os acumula numa prateleira e parece uma soma, mas, se me permite, trata-se de uma ilusão. Seguimos certos assuntos e, ao fim de um tempo, acabamos por definir mundos; por desenhar, se prefere, o percurso de uma viagem, com a vantagem de que conservamos suas marcas. Não é simples. É um processo no qual completamos bibliografias, preocupados pela referência a um livro que não temos, então o conseguimos, e nos deixamos conduzir a outro. Embora, devo confessar, eu seja um leitor limitado. Preciso ler todo o aparato de notas, esclarecer o sentido de cada conceito, por isso dificilmente me sento para ler um livro sem vinte outros por trás, às vezes para completar a interpretação de um único capítulo. Sem dúvida, essa ocupação me apaixona ...” (p.39)
– A casa de Papel – Carlos Maria Dominguez.
E a angustia de saber que não leremos tudo ?
Segundo Paulo Hecker Filho : duas horas todos os dias. Obrigatórias. As outras, digo eu, são por conta do orgasmo! A leitura tem todos os mistérios. Todas as descobertas, e muito, muito prazer!
“Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola. (…) Pois a narrativa se parece com a música no sentido de que ambas dão um conteúdo ao tempo. (…) O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso. (…) Há neste mundo uma situação, há certos fatores cênicos – se é que se pode falar de ‘cenário’ no caso que temos em vista – que fazem com que a confusão e a mistura das distâncias do tempo e do espaço, que vão a ponto de criar uma uniformidade vertiginosa, se produzam de forma natural e lógica, de maneira que, pelo menos para um período de férias, parece tolerável o abandono ao seu enleio mágico.Pensamos em passeios nas praias de mar (…) As pessoas caminham, caminham… e de uma excursão dessas nunca voltarão a tempo, já que se desgarraram do tempo e este se desgarrou delas. Ó mar, nós que contamos esta história achamo-nos longe de ti, mas te devotamos os nossos pensamentos e a nossa afeição. (…) Caminhamos, caminhamos… Desde quando? Até onde? Tudo incerto. Nada se modifica, por mais que avancemos. O ‘ali’ é igual ao ‘aqui’, o passado é idêntico ao presente e ao futuro. Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a unifomidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece, já não existe o tempo. Os sábios da Idade Média afirmavam que o tempo era uma ilusão, que seu curso, entre causa e efeito, não passava do produto de um dispositivo dos nossos sentidos, e que o verdadeiro ser das coisas era um presente imutável. Terá passeado à beira-mar aquele doutor que foi o primeiro a conceber esse pensamento, saboreando nos seus lábios a leve amargura da eternidade?” (Thomas Mann – A Montanha Mágica)
Este ano, para mim, será de poucos projetos literários. Preciso reequilibrar a balança e me focar nos estudos de Direito. Tenho tido tempo para a literatura apenas nos domingos. Estou novamente subindo a Montanha Mágica, é verdade, só que, desta vez, como uma formiguinha… É hora de atravessar minha Linha de Sombra. Mas, no caminho, sirvo-me da literatura para, entre outras coisas, pontuar o tempo que passa, evitando que a sensação do seu transcurso se apague na monotonia da rotina rígida. A viagem é pessoal, assim como o são as marcas que nela deixamos. No entanto, ajuda, e muito, ter alguém para nos guiar. Obrigado!
Ando pulando de um para outro, sem a menor linha, na maior promiscuidade. Quando não dá samba, largo de mão sem cerimônia. No momento, leio, tardiamente e encantada, Macbeth.
Estás desbravando! Não menciones Macbeth…Nem o teatro, nem Shakespeare outras misteriosas aventuras… Tem tanta leitura esperando nas prateleiras! E tanta conversa solta sem nó…
Quando escolho um livro sinto que, na verdade, ele me escolhe. E assim, vou costurando narrativas num percurso que tem sentido apenas para mim.
“Não há nenhuma diferença entre aquilo que aconteceu mesmo e aquilo que fui distorcendo com a imaginação, repetidamente, repetidamente, ao longo dos anos. Não há nenhuma diferença entre as imagens baças que lembro e as palavras cruas, cruéis, que acredito que lembro, mas que são apenas reflexos construídos pela culpa. O tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira. O tempo mistura a verdade com a mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido e com aquilo que me contaram que aconteceu. A minha memória não é minha. A minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento.” (José Luis Peixoto, Cemitério de Pianos, p. 138-9)