Para Lúcia

 

“E depois as chuvas de inverno cessaram. De uma noite para outra a neblina foi empurrada para leste, e a madrugada nos trouxe um sábado azul. Ao primeiro tatear, ainda antes de o sol se erguer de entre as ruínas de Sheikh-Dahar, os pássaros que restaram com vida, com enorme excitação, já começaram a falar entre si sobre a nova situação. Quando o sol raiou eles gritaram e riram como se tivessem enlouquecido.

A luz do sábado e a transparente e tépida. Toda poça, todo pedaço de metal, toda vidraça de janela, ofuscavam nossos olhos. O ar encheu-se de zumbidos e de brilhos e de um preguiçoso fluir, como se fosse de mel. Em cada canto erguiam-se, nuas na desfolha, as árvores de amora e de figo, de romã e de oliva, e os caramanchões de parreira desfolhados, e pássaros e mais pássaros acima de tudo. Um vento leve e transparente soprou do mar durante toda aquela manhã. E os cheiros do mar também vieram até nós trazidos por esse vento.” (p.130)

Amós OZ , Uma certa Paz

Glauco Rodrigues ou Caribé

Deixo a memória de menina chegar. Em 1955 acompanho a festa fervilhante na casa da Vitor Hugo. A mãe costura e borda o cetim azul do vestido que minha irmã vai usar no Baile de Debutantes do Clube do Comércio.  Estou sentada na ponta da escada, atenta. Glauco Rodrigues também costura. Dele o desenho. O jovem pintor usa habilidoso a agulha, e enfia minúsculos canutilhos contas azuis e prateadas. Todos seguem o risco no cetim.  A sala de jantar se transforma em ateliê. Penso no baile. Nas cores.

Os quadros da casa se movimentam na minha imaginação! Também o biombo desenhado em nanquim  A Salamanca do Jarau de Glauco Rodrigues, (ainda não conheço os painéis do cinema Cacique). Penso no prazer das virgens da lenda.  A tentação do homem na florestas verde dos pampas. Minha memória. Deixo-me queimar. Passados tantos anos! Agora com as mulatas do Caribé! Entram, invadem as cadeiras. Estão sentadas, deitadas em meu sofá, preguiçosas e vazias. Lânguidas e queixosas. Úmidas e solitárias como eu. O quadro O muro rosa!  O baiano-estrangeiro! O que eu faço aqui  sentada com elas, – as mulatas? A infância, bem como a memória histórica, são fontes de erros, enganos. A imaginação um  descaminho. Real apenas no poema, nas letras, na tinta, ou no som da sinfonia. Volto meus olhos para as telas de Glênio Bianchetti, os meninos soltando pandorgas. Danúbio Gonçalves e o mulato. O desenho do Scliar, o risco de Iberê Camargo, e esta enorme tela de Camacho. Já estive neste lugar, junto ao fogo, dentro do meu sonho. Outra vez penso que o céu o ar as cores, e estas figuras, e todos os objetos são ilusões. Foi neste momento que eu te moldei na minha imaginação (o homem do desejo): nariz boca e braços de pescador. Quente e terno.  Presenteio com flores. Relógio e uma pequena lupa de aumentar o tempo. Frutas lavadas lustradas cheirosas e pendentes na cesta italiana. Chás, os mais variados. Hortênsias. Duas garrafas de vinho. Pintei os cabelos com mechas coloridas. Releio Paris é uma festa de Hemingway e recomendo  o livro Não apresse o rio (pois) ele corre sozinho de Barry Stevens. Entro na galeria. Lá estás junto à mercadoria que chega das Índias, China, Paquistão e África: exótica visão. Sento na cadeira chanfrada. Depois, apoio meus braços na borda da mesa que ostenta dois castiçais de estanho, um prato de cerâmica inglesa branca. Sala de chá à inglesa.

É verão. Jacarandás roxos ipês amarelos, e o verde por tudo. O bairro tem  calçadas pequenas. Velhas casas tombadas, e tomadas pelo comércio. O que eu faço para ali? Ele se volta em minha direção atento. Penso no piquenique do amor!  Olho as reproduções das telas emolduradas no luxo barroco. O retrato de Yvonne Lerolle, de Maurice Denis,1897. Também outra analogia, A jovem professora, de Jean-Batiste Siméon Chardin, vigorosas figuras iluminadas: mestre e aprendiz. Ainda a tela em dimensões de 80×120, pouco mais, pouco menos, Uma visita agradável, de William Merritt Chase,1895, óleo sobre tela, quadro grande. Duas mulheres elegantes estão sentadas num sofá, conversando. A luz do sol invade o aposento, iluminando os tons da paleta clara do artista. Não é uma cena posada formalmente, mas uma cena típica do dia-a-dia. Pudesse eu pintar aquela loja com a luz da sensação inteira de acolher, abrir e fechar, mas também ficar perto dele. Ali está O devaneio, de Dante Gabriel Rossetti. O próprio quadro não dá qualquer indicação quanto à natureza ou ao tema do devaneio desta bela mulher, embora esteja tão absorvida por ele, que o livro e a flor foram largados em seu colo. Os vários matizes do verde que a envolvem, nas dobras de seu vestido, e as folhas das árvores que a emolduram, contribuem para a sensualidade geral desta pintura. Agrada o verde pousado na sala: os olhos abertos da figura feminina em devaneio. Este verde sobe pelos dedos longos que prendem o galho frágil de um arbusto: mistura da roupa com o jardim de Rossetti, o pintor. Os olhos dela, ou os meus, naquela tela? Agucei os sentidos. Estou presa no verão de Porto Alegre. Elizabeth M. B. Mattos – junho 2013 – Porto Alegre

A reprodução das telas citas, e descritas se encontram nO Livro de Arte, de Mônica Sthahel.

Os dedos, a mão

 

Este cansaço que caminha ao lado surge sem avisar, num repente! O pequeno prazer que empresta sentido a vida desaparece. Fico a dar braçadas sem rumo, faço força, mas não saio do lugar. Chegarei ou não perto da paz? No alto da montanha encontro o avô de Hady dos Alpes. Cabras feno e estrelas, como na história. Não conheço o rio que mergulho. E não estou ao pé da montanha, mas na praia. As ondas não saem do lugar, chegam e vão iguais sempre as mesmas. Com desespero controlado procuro a mão generosa. Alguém deve saber o rumo o lugar seguro e a música. Terra nova! Elizabeth M.B. Mattos – janeiro 2013 – Torres

“Muitas pessoas diferentes, esquisitas, concluiu Iulek, esforçando-se para parecer um povo. Para se exprimir da mesma maneira. E substituindo sem parar canções antigas por canções mais novas. Dando expressão oral e escrita a todo o tipo de esperanças, queixas e saudades como se esse abundante palavreado tivesse a força de silenciar essa fraca voz interior: por que, por que se arrefece assim o coração cansado?” (p.125) Amós Oz  Uma certa Paz – Companhia das Letras – 2010

Se Cambará do Sul e São José dos Ausentes

Frio! Sonho Cambará do Sul e São José dos Ausentes. Frio intenso!  Em Torres venta. De volta para casa estico as pernas no balanço da varanda. Pelo envidraçado da janela vejo objetos que se movimentam pelo chão: meias, copos, garrafas e livros. Imagino a dança. A casa em desordem permanente. Sigo com as pernas esticadas, penso em abrir a última garrafa de vinho, comer o último pedaço de peixe, e as uvas que sobraram na tigela verde. Então levanto. Elizabeth M.B. Mattos – janeiro 2005 – Torres

Exaustivamente sozinhos

Nossos sentimentos são assim, nossos, e, portanto, legítimos. Bom poder dizer o que se sente mesmo não sendo objetivo, do jeito que se quer dizer.

Sol de outono, alguma coisa no ar, ou chuva pesada de verão. Janelas abertas. Coração apertado. Outra vez o vazio de ausência. Quando deixarei de estar, tão exaustivamente, sozinha? Elizabeth M.B. Mattos – 2013

Ana Maria: Acho que sempre me sentirei sozinha. Sempre será assim. Mesmo que as janelas estejam abertas o coração sempre se sentirá apertado. “nossos sentimentos são assim, nossos, e, portanto legítimos. Bom poder dizer o que se sente mesmo que não seja objetivo,  ou como se quer dizer.”

Tinta dos autógrafos

Observo o terno bege de linho que Antônio veste. Caminha ora pelo encerado da tábua corrida, ora pelos vermelhos dos tapetes carregando pequenos fardos de tecido. Camisa  branca, cambraia. Não usa gravata. Abertos os primeiros botões. Dedos longos. Testa larga. Na loja um rapaz, cabelos puxados para trás, oferece água fresca em copos pequenos. Logo desaparece no fundo da sala. É o verão que se fecha nesta hora mais quente. Rendas expostas em ondas. Sedas como rios. Reparo nos gestos lentos. Escuto a voz mansa, cadenciada. Observo espio, vejo. Levanto os olhos para as estantes. Peças de tecido abertas. Posso escolher. Tocar. Compro, nos metros de algodão, a luxúria. Estou pronta. Antônio segura minhas mãos  antes de nos despedirmos. Caminho pela calçada apressada. Sigo meu rumo. Céu ar terra, cores e figuras. Serão apenas ilusão? Sou colorida e madura. Seguro o desejo. Se a Feira do Livro na Praça da Alfândega não estivesse pândega com sua patronesse embaixo de elegantíssimo chapéu de palha, batom vermelho, saia longa escorrendo pelas pernas, olhar vago de musa… Se não estivesse tão quente! Se eu não tivesse entrado na Loja de Tecidos estaria salva nos teus braços, seduzida pelas cores. Sigo com os olhos teus dedos na tinta dos autógrafos. Ausente. Elizabeth M.B.Mattos – janeiro de 2013 – Torres