Arrumações e descobertas

Afirmações reveladoras, encontros, desencontros. Perseguição engraçada! Navegar? Náufragos, ao vento! Leituras, autores preferidos, novos. Desnudam, e aproximam a terra

Trejeito, intenção, desculpa, olhar. Através deles o strip-tease doméstico. Será que é exatamente assim sem novidade o mundo? Sem originalidade? Somos uma réplica, ou imitação? Há que revolver, dar voltas, e voltas… Mesmice. O recorte, o gozo perfeito.

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“Faço a mim própria, uma vez mais, a minha Eterna Pergunta. Que é que me torna tão difícil o momento da expressão literária? Se neste instante me sentasse para escrever algumas das histórias que estão completamente redigidas, completamente prontas no meu espírito, levaria dias e dias a escrevê-las. E são tantas essas histórias! Passo tantas horas a ruminá-las que, se conseguisse triunfar do meu cansaço e pegar na pena a valer, deveriam escrever-se sozinhas, de tal modo estão prontas até o mínimo pormenor. Mas o que falta é atividade. Todos os pretextos me servem: não tenho um canto para escrever, não tenho secretária, a cadeira não é cômoda…e, contudo, e no momento exato em que me lamento, dir-se-ia que surge, precisamente o local, a cadeira que preciso. […]

…Quando se é pequeno e doente e se está exilado num quarto distante, tudo o que acontece para além desse quarto é maravilhoso…” (p.114-115)

Fragmentos do Diário, – Katherine Mansfiel – Coleção dirigida por António Ferro. Contemporâneo, Biografias e Memórias.

18 anos e 40 anos, e 50 anos

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Prezado amigo:
De repente volto para a casa da rua Vitor Hugo, depois dos quinze a rua André Poente. Elizabeth era/ é meu nome. O jeito certo do pai, e da minha mãe me nominarem. Beth vem da meninada, da escola, de eu mesma a me diminuir. Apequenar. Adolescer. E este tempo já passou. Dizes bem, Elizabeth.
Como crescemos! Mais urgências. Atropelos, escaladas. E solavancos. Para descrever o começo, esboçar a história. Confesso, atrapalhada, medrosa, confusa. A nudez da verdade com o espanto adolescente, ingênuo de se esconder. A boniteza, dizem, abençoa. Abre porta, escancara janela, coloca flores no caminho, ilumina. Pétalas e perfume. A beleza dança. Tudo bem. Não posso o contrário… Século XIX escorrendo spleen, nostalgia. Tedio barra o caminho. Imaginação, já escritura rebatendo a vida comum. Não. A beleza foi suporte. Aceito.
Entrei direto na vida acreditando que podia. Célia Ribeiro me deu mão, a chance. E temos o Jornal Feminino na Globo. Artes plásticas. Literatura. Participei uma noite do Jornal das vinte e duas horas com Lauro Schirmer. Entrevistas. Ideias mimadas. A televisão foi janela. Seguir parecia tão fácil! Revista do Globo inteira a disposição! Queria ser jornalista, escrever. Um dia Flávio Carneiro, cortou a entrevista com Xico Stockinger, duas páginas, publicou uma. Do alto dos meus dezoitos anos reclamei. Respondeu: “Vendes bem capa de revista, não escritos.” Foi a primeira chuveirada gelada. Abandonei o jornalismo da televisão, as entrevistas para a Revista Globo. E o medo entrou na história. Deixo o mato tomar conta do meu campo de futebol. Elizabeth M.B. Mattos, Torres, 2015.

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Eugênia abraça Olivia

Explicar o sentimento. Dar a receita. Transformar em risada tua angustia. Solucionar entraves. Desfazer o zelo em consolo. Contar da ansiedade miúda. Engodo, mentira, e o faz de conta da infância… Igualar sentimentos. Afeto certo. Respeito. Visão destorcida da paixão que por si só explica, ou justifica. Desmentir o pavor interno de possível rejeição. A escolha de estar apenas em si mesma, luxo excêntrico. O jeito errado de não ter medo. Ser indesejável na solidão consciente. A festa de balões verdes… Trauma da infância ilegítima, e sem mãe. Marilyn Monroe. O sentimento do abandono. Expor, recontar, repartir, inventar. Queixas ranhetas, lembranças esquecidas: um guardanapo com monograma. Livro encadernado de vermelho. Ordem. Beleza. Excesso na simplicidade. Um tapete branco. Hortência. O retrato. É preciso sentir amor no milagre escondido, na natureza humana, do desabrochar da flor, na chuva, na terra, na areia do mar…. Procurar no sentido absoluto porque tudo já está encontrado, achado. Explicar desejo. Certeza absoluta. O fio imaginário na estante cheia de livros não lidos, sem pó. O escuro. Noite mal dormida. Subiu as escadas até o terceiro pavimento sem dificuldade. Bateu, tocou a campainha. Logo a porta se abriu devagar, por inteiro. Eugênia vestia azul. Cabelos puxados para trás. A expressão lisa, talvez feliz, abraça Olivia. Elizabeth M.B. Mattos –  Porto Alegre 2015 –

Ensaiando, – o tropeço

Ensaiando a dor, – tropeço.
Depois da dor, daquela dor dura e persistente, o corpo parou de suar. A cabeça afundou no travesseiro. A mulher enrolada nas cobertas, braços apertados ao corpo, ou presos, ou amolecidos… O volume humano na cama. A cadeira de riscas geométricas ficou menor, a mesa abarrotada de livros, papéis, e caixas completou o desalinho. Desordem. No chão vestido, meias, sapatos virados. O quarto foi mudando de cor: azul, violeta, depois vermelho. Finalmente o perfeito da noite. Ruídos da rua sobem pelos degraus com a velocidade natural do som; entram lentos, comovidos. Janelas se fecham mansas. Ela não acordou no dia seguinte, apenas no meio da tarde do outro dia. A dor desafiando, pretensiosa, com pompa. Eugênia se conformou. Olhou para os comprimidos, o copo vazio, levantou medindo os passos. Abriu janelas pro vento fresco. O rosa, o branco, o amarelo das folhas se dobraram… Tempo enganoso. É preciso medi-lo com relógios, badaladas, números. O sentimento se acomoda no medo. Ela não sabe por que está ali tão cansada! Não há motivo. Apenas sentiu a dor, tomou o remédio, e se entregou.
A beleza daquele copo esquecido na mesa, junto as frutas, perto do pote violeta, transparente, neste momento redefine o espaço… sentimentos. O banal precioso. Olhar o tempo através dos objetos. Recontar a história matizada… A percepção zela este caminho. E se não puder olhar, pode escutar o silêncio, o gato, os carros, a luz no movimento das cortinas. Pode? E o cheiro de jasmim, doce, enjoado também descreve…
Deixou a água escorrer, encher a banheira. O cabelo ficou azul, o corpo uma espuma. E voltou para o mergulho. Repetidas vezes brincou com o perfume. Acomodar-se na vida do outro, entender, ouvir e ficar. Uma ideia confusa sobre a convivência. Expandir a dia numa hora solta com aquela conversa banal sobre peras e maças, farinha e beijos. Uma matemática difícil. Uma gramática impossível. Da dor para o olhar, do olhar para a ideia.
A dor invade, atrapalha. Volta para a cama. Desta vez as pernas se alongam, retoma a medida certa do colchão. Ocupa o espaço inteiro da cama, e volta a dormir.

Então?! Temos que voltar a escrever. Como? Assim mesmo, sem pensar, como se fosse um?!…Exatamente o quê? Diário? Carta, uma carta. Relato na terceira pessoa? Um nada. Um pulo. Tropeço. Sou Eu.

A casa do Incesto

“Sou a mulher mais cansada do mundo. Estou cansada quando me levanto, A vida requer um esforço que não consigo fazer. Por favor, me dê aquele livro pesado. […] Sinto um grande terror de sua compreensão pela qual você penetra no meu mundo; aí, estarei revelada e terei que compartilhar meu mundo com você.
Mas Jeanne, o medo da loucura, somente o medo da loucura nos impulsiona para fora dos recintos da nossa solidão, para fora do sagrado da nossa solidão. O medo da loucura incendeia as paredes da nossa casa secreta e nos manda ao mundo a procurar contato caloroso. Os mundos autofabricados e autoalimentados são tão cheios de fantasmas e de monstros.
Conhecendo apenas o medo, é verdade, um medo tamanho que e sufoca, que fico de boca aberta e sem fôlego, como uma pessoa privada de ar; ou em outros momentos, sem ouvir, de repente surda para o mundo. Bato os pés e nada ouço. Grito e nada ouço do meu grito. E aí, às vezes, quando me deito na cama, o medo me toma outra vez, um grande terror do silêncio e do que virá deste silêncio em minha direção, a bater nas paredes das têmporas, um grande medo crescente, sufocante. Bato na parede, no chão, para afastar o silêncio. Bato, canto, assobio insistentemente, até afastar o medo.” (p.166 – A casa do Incesto)
A casa do Incesto & Outras Histórias, Anaïs Nin. Ed. Rosa dos Tempos. 1991

Porque escreves

Estou aqui a escutar meus discos de vinil em francês. Rejuvenesço cintilante. Quero de volta os anos de coragem para esticar o fio, e conectar. Escrever. Ler mais. E a música. Desenhar, se não sei, então colorir. Caminhar neste frescor chegando.

Esquisitas estranhezas fechadas, silenciosas. Gosto quando despencamos em longas cartas. E citas o poeta: … essa felicidade que supomos, / árvore milagrosa que sonhamos / toda arreada de dourados pomos / existe, sim: mas nós não a alcançamos / porque está sempre apenas onde.  a pomos / e nunca a pomos onde nós estamos.” (Vicente Augusto de Carvalho). Depois da carta, o prazer, o gosto. Tua presença invade a sala. pontifico: a distancia se apequena porque escreves.

Abril

Se o inverno chegar não vou me importar. Abril tem sorriso certo neste il, tem o r carregado, e l no final. Escolho casacos, separo mantas, coloco um gorro, e vou caminhar, se o inverno chegar.

Se o inverno chegar o mar enverdece. O vento corta. A lagoa cintila. Na praia, areia molhada, pegada, concha, e ninguém.

Se o inverno chegar vai ter cinza no céu. Adormeço logo.

Murmúrio, vozes ...

Vou gostar da chuva na vidraça, se o inverno chegar.