Somos todos culpados. Ardida esta dor. Mas a culpa também ameniza o católico sentimento de arrependimento. Fica-se cinzento. E deveria ser azul, mas…
A culpa começa, e pesa nos velhos. Culpada avó porque complacente. Conciliadora por meninice, por defesa. Escuta o horário, acerta o compromisso. Registra. Planeja o que nominou passeio: acompanhar/levar o menino ao dentista. No entanto, na hora final, cede lugar ao pai. Decide ele mesmo levar o filho, assumir responsabilidade, e se fazer presente. O motivo pelo qual brilha o lugar principal parece escorregadio. Não, não é questão de escorregar, mas também não é evidente o motivo, há que se explicar. A cadeira da segunda fila, ou da terceira fila pode ser boa, ou até melhor do que a da primeira. No entanto, por motivo específico, não aparente, nem evidente, alguém quer ser o primeiro. Mérito ou orgulho. Ou sei eu lá o porquê da decisão. Aborrecido, feliz, ou apenas no comando resolve levar ele mesmo o filho ao dentista. A avó diz o horário: nove horas, mas o pai afirma, dez horas. Escrito. O argumento parece decisivo.
O pai leva, o pai pontua, o pai se sente culpado. Atrasado. Não deveria ter verificado, conversado um pouco mais? Investigado?
A mãe, no momento ausente, avisa filho, avisa avó. Culpada, nada avisou ao pai.
E o menino, confuso. Aceso ao comando não pensa. E agora se sente culpado. Culpado porque nem é tão menino assim. Culpado porque a mãe foi bem clara: “o dentista trocou o horário das dez para nove horas. Tua avó te acompanha.” E fica só a confusão.
Ausência e culpa. Arestas do universo doméstico. Mas o dentista esperou.
Volto ao livro de Karl Ove Knausgård quando se refere aos filhos, e as frustrações.
“[…] Isso é profundamente humilhante. Em tais situações me sinto por demais distante de quem desejo ser. Não tinha consciência de nada disso antes de ter filhos. Achava que tudo estaria bem se eu fosse bom para eles. O que é mais ou menos verdade, mas nenhuma das minhas experiências anteriores me preveniu da invasão de privacidade que ter filhos implica. A intimidade extrema que temos com eles, a maneira como nosso temperamento e humor, por assim dizer, se mesclam aos deles, tanto que nossos defeitos deixam de ser particulares, não podem mais ser encobertos, mas de certo modo assumem uma forma exterior e se voltam contra nós. O mesmo vale, claro, para nossas qualidades. […] ,e, mesmo que às vezes eu perca a paciência e os reprenda, eles confiam em mim e procuram minha companhia sempre que precisam. Não há nada de que gostem mais do que sair em família, algo que para eles se converte numa aventura […]. ” (p35)
Menos culpa? Talvez. Elizabeth M.B. Mattos – julho de 2016 – Porto Alegre

Afinal é um texto no texto. A leitura tem esta magia de estar junto mesmo longe. Ler é também escrever…mentalmente nos escrevemos ou reescrevemos a cada afinidade … Escrever sentimento, ou memória de outra lembrança. Dos olhos. Do olhar feito janelas. Importa o que vemos, o que sentimentos, não apenas o envelhecer… o olhar não envelhece, guardamos aquela primeira centelha, aquele impulsivo do novo. No jovem olhar a dignidade vestida como desafio. Desafio até para morrer, mas muito mais para viver como escreve um amigo: “Tenho um amigo psiquiatra, mais velho do que eu.
Saímos para jantar e conversar sobre a vida, sorvendo um bom vinho e vivenciando aquela intimidade, que só os amigos possuem.
Num momento digo, é preciso ter dignidade para envelhecer… aceitar, no mesmo momento ele responde: É preciso dignidade até para morrer, após continuamos a falar do que vivemos e curtimos , saboreamos aquele momento de pura amizade e verdade.
Belos olhos são lindos, mas o mais importante é para aonde eles olham!” PARA AONDE ELES OLHAM é o que importa.