Estranhos são os que nos conhecem mas pensam que nos decifram. Somos atitude, expressão, também gestos e manias. Não sinto solidão em mim.
CONVERSA com um estranho conhecido
Eu: normalmente leio devagar, não liguei a televisão para guardar bem as impressões da leitura, e te contar. Penso como tu, mas não vivo na rotina.
Tu: será que sou egoísta? Penso que não, sinto – me feliz contigo.
Eu: tu levantas e vais para o mundo
Tu: vida social para mim é de certa forma continuidade das burocracias. tu me dás sentido e prazer: falo de espírito
Eu: como és jovem precisas de muito mais, mais vida. Sabes bem
Tu: alma
Eu: concordo contigo, e por que não podemos dividir o real, o que já somos? Nossa relação, uma ideia, um espaço entre dois mundos, no mínimo, o esquisito e estranho, instigante real! Estranho!, porque preciso de ti, preciso
Tu: desgastante ser quase um boneco sei lá cumprindo rotinas, mas eu também preciso de ti
Eu: somos isso também, e somos nós, grudados. Sinto tua falta, no Rio eu estava diferente, mas a exaustão volta.
Tu: o que me assusta no enfrentamento do corpo a corpo: não conseguir seguir em frente sem estar ao teu lado
Eu: o corpo o corpo cansa. Sempre cansa. Sentimos porque somos sugados, e absorvemos o outro. Tu sabes
Tu: no Rio estavas em outra dimensão, mas estavas ligada, de certa forma purgamos
Eu: estar atenta ligada presente o tempo todo pode me tirar as forças. Dormi bastante também. Penso, não sei agora: purgar é exatamente o quê? Pagar por alguma coisa?
Tu: mas estás/estavas linda, radiante
Eu: podes me esperar?
Tu: colocamos frente a frente nossos sentires e desejos
Eu: conseguimos
Tu: somos dois apaixonados pelo amor que sentimos
Tu: eu te espero
Eu: verdade isso. Somos apaixonados pelo que sentimos um pelo outro. Eu me sinto preenchida, sem espaço para mais nada, o que me parece trágico também, assunto para um dia inteiro
Tu: talvez uma vida inteira, vá lá antes que chova
Eu: uma vida inteira apenas nós dois sem filhos sem cães nem gatos, apenas nossa. Vou, vou me vestir. beijobeijobeijo Bom dia!
Tu: ah colocas meias e mangas compridas beijobeijo beijo.
Tu: Gosto muito de frutas, muito mais de verduras e legumes, tive dificuldades de apreciar os verdes de gostos diferentes (sorrindo e divagando)
Eu: Vou logo. Depois tomo café, e penso, tenho que sair.
Tu: tomas café antes. Pensas que tens de sair?
Tu: não compreendi. É uma exclamação ou expressão metafórica?
Eu: já fui, já voltei. Comprei tudo na feira, menos tomates. Comprei couve brócolis cenoura beterraba cheiro verde cebola e alho, – tudo na feira ecológica. Está quente na rua. Agora tomo um café, depois volto…
Tu: como és rápida!
Eu: apenas três pessoas comprando na feira, Ônix precisa caminhar mais (eu também), vou voltar para a calçada, preciso caminhar, caminhar. Não me espera.
Tu: (sorrindo)
Eu: sou anarquista (?!), tudo para ontem. E rápida, café agora
Tu: sou teu contrário
Tu: vou te enviar uma imagem que te decifra enquanto caminhas com a Ônix, – não esquece os remédios
Tu: teu coração continua só coração (desenhos mostrando imagens de seis pessoas e o tamanho do coração, – um lápis)
Eu: (foto da feira em cima do balcão preto da cozinha)
Tu: maravilha, como sempre, tuas composições. E as maçãs? Ontem de madrugada senti desejo de comer maçãs argentinas no forno e do perfume que fica no ar pela casa
Eu: que delícia!
Tu: bem, sobre o Rilke, ele teve uma queda brusca de peso e o veterinário disse que estava com imunidade baixa, estressado por causa da pia e que não gostava da passadeira ou que estava me captando ou se sentindo abandonado ou os traumas “de guerra” da infância… Sabes, essas teorias medievais! Que estava/está anêmico, que era preciso investigar onde estava perdendo peso e o porquê, e por fim me xingou dizendo como é que tu tá dando asas para a santa ignorância, pegas um bicho de rua? É certo, terá problemas e mais problemas! Agradeci e me retirei furioso. Conversei com o Marcos, e ele me disse: cuidas tu,
Eu: (pensando) meio triste. As maçãs? As da geladeira… Pobre do Rilke!
Tu: tu gostas também? tu achas?
Eu: eu tinha maças em casa por isso disse tristes, nunca faço deste jeito. Nem sei se sei fazer…, apenas o purê de maça no Natal. O pai adora/adorava!
Tu: não queria te trazer lembranças tristes; fácil demais more
Eu: bobagem! As maçãs não estão felizes. Murchas depois de tanto tempo na geladeira. Não comprei morangos, nem limões
Tu: é só colocá – las no forno para isso são as argentinas, faz as que tens na geladeira
Eu: e comprei bananas demais
Tu: morangos nem é bom ter
Eu: mas eu adoro. Dizes para “temperar” como? , nunca fiz maçãs deste jeito, trabalhoso
Tu: faço in natura
Eu: colocar alguma coisa (aha!) Vou ter que comer contigo
Tu: os chefs tiram os cabos e colocam açúcar e canela
Eu: aliás, já te disse, ando meio sem vontade com a cozinha… Comprei coisa demais! Droga! Isso: açúcar e canela, mas in natura deve ficar bom
Tu: vamos sim comer e aprender juntos outros gostos e sabores
Eu: tomei um café enorme
Tu: estás certa
Eu: tô giboiando! Bem que gostaria de ter uma alguém para limpar tudo e colocar a casa em ordem
Tu: a primeira refeição tem de ser a principal
Eu: maior caos
Tu: bagunça é vida, – caos é não ter bagunça
Eu: café preto, salame pão e manteiga não é lá nutritivo, mas sabes, nisso não me cuido
Tu: estava te contando antes do Rilke…
Eu: verdade o que dizes, mas o Rilke (o gato) desculpa
Tu: embutidos não são muito saudáveis, – trocas por queijos brancos ou ovos
Eu: sou agitada, tu és metódico organizado tranquilo e atento
Tu: vou te enviar as fotos de como ele estava quando tu estiveste no Rio
Cada um a pensar, teclar enquanto o outro segue em pensar noutra coisa, no que ainda não passou, e o novelo segue desenrolando. Conversa no computador.
Eu: eu sou ao contrário, tem uma flor uma única flor no meio da buganvília
Tu: por isso nos completamos e somos curiosos um pelo outro
Eu: tá saindo um sol! vou caminhar
Tu: espião
Eu: a chuva não vem… (foto da buganvília com apenas uma flor). Já tomaste café?
Tu: a chuva virá, sim
Eu: estamos de volta
Tu: tu terminaste?
Eu: sim, tenho que arrumar lavar… Preguiça!
Tu: pensei que o Rilke ia morrer
Eu: estou atirada na cadeira de conversar contigo
Tu: por isso não queria falar
Eu: o que houve
Tu: estou te atrapalhando, – te disse lá em cima
Eu: não
Tu: tu estavas lá fora… vi teus post no Amoras
Eu: agora li. Quem é o Marcos
Tu: o médico dos gambás
Eu: ah! ele sabe das coisas
Tu: lembras?
Eu: …, mas o veterinário estava estressado exagerando. Lembro sim, não fica brabo comigo. Eu não tinha lido. Pulei. Tenho que voltar, desculpa, distraída
Tu: louco para fazer exames, usar as máquinas e ganhar dinheiro. Tu sabes bem
Eu: isso mesmo…
Tu: o Rilke está com um fungo, estou a medicar. Ele é muito sensível / sensorial (espaço de tempo)
Eu: eu fui pendurar os lençóis. Vê. E não voltei a caminhar com a Ônix. Precisa mesmo de cuidados, o pobre!
Tu: cuido com muito carinho ele me morde como um tigre, estou com as mãos arrebentadas, mas sou paciente e tolerante. Terminas tuas coisas more arrumas tuas bagunças
Eu: difícil dar remédio para gatos! Cuida, cuida de ti porque eles são transmissores de tantas doenças!
Tu: está vacinado sem vermes pulgas todos conformes
Eu: a máquina de lavar tocou a música: vou pendurar a roupa. Sim, tenho que fazer as coisas, tenho que fazer todos os dias
Tu: faça o básico, espero
Eu: tô cansada
Tu: tu acordas cedo
Eu: estou enjoada cansada dormi tarde
Tu: alérgica total
Eu: uma droga estar doente, não sou alérgica. Estou gripada, vou voltar para o remédio
Tu: tu não estás doente
Eu: ué! estou fungando
Tu: os cheiros, o tempo
Eu: cansada! cheiros são minha maldição
Tu: queria dormir contigo
Eu: pois seria bom, mas se voltar para cama agora inverto tudo outra vez
Tu: descansar no teu descanso: foi só um querer
Eu: não sairíamos da cama…, uma domingueira no meio da semana. Estou olhando para os lados, desanimada: vontade de sair correndo, morar num hotel e ter quem faça as coisas. Ainda tão cedo e já cansei.
Tu: correr do quê?
Eu: dessa bagunça desordem
Tu: vou me organizar e vou te servir
Eu: vou ter que sair com a Ônix, ao menos até a praça! …apenas até a feira é pouco (sorrindo feliz, imaginando)
Tu: tu tens cada ideia!
Eu: o dia mal começou
Tu: …, mas eu vou ainda ser teu servo mais fiel.
Eu: seria bom, mas ainda assim íamos precisar de alguém para nos servir.
Tu: não. Faço tudo
Eu: tô carente de uma pessoa a fazer tudo, tu? ficarias quieto comigo
Tu: serei teu empregado
Eu: de vidros limpos, livros sem pó, chão com cheiro de cera, tapetes limpos e perfumados…
Tu: faço tudo
Eu: lençóis perfumados, cozinha limpíssima, prateleiras ordenadas/ arrumadas. Panelas espelhadas, lindas! Flores nos vasos: beleza doméstica.
Tu: vou te impressionar
Eu: livros nas prateleiras, não empilhados pelas/nas mesas. Ias morrer de tanto fazer… tal a bagunça!
Tu: vou deixar tudo como desejas
Eu: quando acordo penso que vou arrumar já no meio do dia desisto. Mal consegui espaço na mesa para o café. Desabafando: cansei de ser dona de casa, (foto com os castiçais de estanho, – mesa passagem, – três fotos de mesas com livros)
Tu: para mim será um prazer zelar por tuas coisas
Eu: (outra foto de livros bagunça)
Tu: tu acendes velas?
Eu: já te apavoraste. Acendo quando estou na cozinha por causa dos cheiros.
Tu: iria estar no teu mundo, finalmente
Eu: (foto de mais livros empilhados, – um pedaço de uma aquarela do Danúbio)
Tu: devias assar maçãs para perfumar a casa
Eu: (foto da desordem livros e caixas).
Tu: não sentirás ciúmes das tuas coisas?
Eu: não tenho muitas coisas, tenho livros. Aqui é pequeno. Teria ciúmes sim. Ah! esqueci das gavetas que também estão uma bagunça…
Tu: irias me beliscar? sou discreto
Eu: fico feliz que penses assim… eu ia te beliscar, e não te deixar fazer nada. Não sei olhar, só sei fazer…
Tu: tu me ensinarias o teu jeito
Eu: a ideia de assar maçãs é ótima, – tenho duas na geladeira. Vou experimentar. Não, já te digo o motivo de beliscar. Explico: se não és tu a arrumar não saberás encontrar. É uma geografia pessoal o armário a estante. Poderíamos fazer juntos se tuas coisas estivessem com as minhas coisas!
Tu: quando elas racharem e estiverem cor de cuia estão prontas… sim, juntos, uma boa ideia
Eu: a casa, prateleiras gavetas armários estantes são intimidade… vou prestar atenção, e te conto
Tu: são histórias
Eu: tu já conheces tudo. Vou sair. Tenho que levar a preta para passear. Te cuida. Isso. São histórias, boa ideia! Abrir uma gaveta e escrever, descrever. Tenho que voltar a escrever. O livro de Kazuo IShiguro – Não me abandone Jamais – tomou conta de mim, cortou por dentro, dor, amargo. Fiquei impressionada.
Tu: …e tu de mim, por que perguntas?
Eu: gostas de ler, sei tudo de ti? Não sei nada…
Tu: é como as refeições
Eu: eu te imagino
Tu: é vital para mim
Eu: mas tu me sabes, e me conheces, e sentes o cheiro e eu te mostro detalhes. Até o vento eu te faço ver. Eu não sei nada, ou tão pouco…, ou sei mas quero mais, muito mais. Não sei do teu café do teu almoço; nem quantos travesseiros usas. Sei do banho demorado. Sei do sofá. Um pedaço de mesa, do Rilke, mas não dos livros que lês. Da roupa que usas.
Tu: dois travesseiros
Eu: dos livros não sei quantos nem como lês, tua letra não conheço
Tu: tu escreveste um poema
Eu: falta tanta coisa! tu usas dois? eu preciso de três
Tu: uso um
Eu: somos muitos
Tu: o outro é companhia para o outro
Eu: muitos travesseiros muitas histórias. Conheço isso. Eu preciso de três: os meus me atropelam de noite
Tu: tu estás me contando uma história fascinante
Eu: tenho que levar a Ônix, e te cuida te cuida te cuida
Tu: estou apaixonado por ti
Eu: vou comprar mais maçãs e pensar em ti. Te imaginar mais e mais no dia que é amanhã à tarde à noite e na madrugada. Um dia te encontro com a lua.
Eu também estou apaixonada: ontem de noite tinha lua crescente e a noite era cálida. Passeamos um pouco sem medo, Ônix eu, mas quando vi um carro do outro lado da lagoa entrei depressa no edifício. Essa coisa do medo! Já tive medo de ti. De nós. Elizabeth M.B. Mattos – editado em junho de 2018 – Torres – ventaventaventa, ontem foi verão, de dois dias verão. Hoje ventania, amanhã, de certo já o inverno.
“[…] deveria ter-me lançado na realidade – na dura realidade que não admite sonhos. Eu deveria ter recomeçado de baixo e ter subido novamente até as alturas – mais alto ainda do que antes, apesar de tudo o que tinha acontecido. Sra. Borkman Balançando a cabeça e olhando –a com um ar professoral. – Nada de novo acontece. Aquilo que já aconteceu também não se repete. É o olhar que transforma as ações. Um novo olhar transmuda antigos atos. (Interrompendo – se). Mas, você não compreende nada disso. – E é esta a minha maldição: não ter nunca encontrado uma única alma que me compreendesse. Talvez uma. Mas há muito muito tempo atrás. Numa época em que eu não imaginava um dia precisar de compreensão. Depois mais ninguém. Ninguém atento o suficiente para, estando de vigília despertar-me – para soar com o sino da manhã fazendo-me renascer alegremente para o trabalho duro e convencendo – me de que eu não tinha feito nada de irreparável ” (p.67) John Gabriel Borkman Henrik Ibsen – Editora 34 – 1996