O telefone silenciou. A rede de informações também. Extravasada aflição nas lágrimas não derramadas, fechou os olhos para dormir. Mas do outro lado a cena continua. Ninguém pode saber o que acontece de fato. Quem são estas pessoas?
Soubemos que a mulher, mãe dos filhos dele, agora, pegava a lotação para trabalhar numa corretora de imóveis. Na idade dela, sem nunca ter trabalhado antes, penava…
Vender ou alugar moradias, ou vender pastel e refrigerante. Alugar vestidos, vender alguma coisa: educada apenas para respirar. Entrou no ramo imobiliário, aberto para qualquer faixa etária depois de prestado o tal exame. O ramo imobiliário abraça uma gama diferenciada de pessoas. Diferenciada não pela qualificação específica, mas por ser necessário saber lidar com as pessoas: polidez pode se ótima qualidade. Vender o produto. Nem sempre negociar, apresentar, convencer. Fisgado o peixe o negócio se faz sozinho.
O empregado da corretora, ponte necessária ao fluxo de procura: isca útil coberta de delicadeza. Apesar da pobreza e da situação calamitosa do país as pessoas querem morar, buscam sua caixa/ seu quadrado particular: comércio imobiliário.
As corretoras acolhem para o trabalho pessoas de todas as idades, e não perdem dinheiro: comissão.
É esta situação a situação que ela se encontra depois da separação litigiosa de um casamento de já vinte anos. Se, naturalmente, conseguirmos qualificar de emprego tal situação. Está quebrada por dentro, na alma também. O dinheiro perverte, vende, compra, aluga, destrói.
A igualdade da mulher, direitos humanos, o caráter e a convivência de trinta ou vinte ou dez anos não modifica o senso prático nem o valor da moeda, das cifras. Afinal, negócios são negócios: relação direta de pai para filho. Depois do dinheiro tudo o mais pode ser também o resto.
Nesta situação caótica meio ao litígio de uma partilha, dita importante, seguem os dias formando anos…
Embalada na própria solidão, divide o pouco entre aluguel e comida.
E as pessoas pensam que sabem do passado do outro… Tudo que for referencial ao já conhecido tem a marca de uma faceta; o visceral que se deteriora na lembrança. Não é isto nem aquilo muito menos aquilo outro… Metafísica, filosofia barata/ popular, comum. Como saber a história toda, a alma inteira, o sentimento?
Pessoas a viam entrar na lotação, cumprir o horário, sair da lotação cansada se detinham nos sapatos com salto muito alto, na saia justa. Maquiagem, bastante. Cabelo puxado pra trás, arrumado. Olhar de quem procura. O que mais?! Vazio.
Foi quase um ano neste silêncio. Nenhum irmão olhou por ela. Ninguém veio vê-la, ou oferecer ajuda. Ela saíra roubada pelo direito de quem tem diretos, não pela lei. A lei se esfrega/ou se joga na sarjeta com os desvalidos. A lei dos salões, toda engomada com falsas rendas, soluções rápidas.
Para ela sobrou a mortadela com leite e pão. Ovos batidos e bananas.
Agora aquela história estranha do desaparecimento da filha.
Não chorou. Por que o faria?
Apenas engasgou e ficou seca, quieta.
Ninguém bateu na porta. O telefone não tocou.
Roupas bonitas. Sorriso farto. Mimosa do pai, beijada pelo noivo, amparada pelos irmãos. Não perguntou nunca por ela, apenas apontou a estrada estranha / desconhecida que se apresentou. Ela foi.
Com quem conversaria? Bateu na porta da vizinha que sabia estar vendo o último programa da TV Bandeirantes. Ritual. Pediu uma cerveja, comentou da insônia, as duas ficaram ali mesmo segurando as portas no corredor no meio de três palavras.
Julieta, a vizinha, aproveitou pra devolver o quilo do café da semana passada; deu boa-noite, ia desligar o noticioso, nada interessava. Sônia pegou a Antártica… Vou fazer pipocas, disse resmungando e não contou nada.
Hedionda beleza.
Beleza devorada pelo valor que mede e rasga. Há muito tempo esquecera o dinheiro. Assim não podia entender esta troca de gente por dólares, câmbio, juros, lucro…
O que poderia entregar no resgate da filha? Ela mesma? As contas ou a possibilidade de vender o apartamento do último andar do prédio da esquina?
Talvez a pensão indefinida, ou a parte do patrimônio que ainda não fora dividida?! Esquecera a questão dos direitos.
Esquecera o processo. Não pensava neles, trabalhava para ter comida, luz e onde morar. E o senhorio era gentil se atrasava o aluguel.
Agora, subitamente, o telefone lhe comunica o fato: tragédia, a filha sumira, sequestro, disse o marido.
E, ainda gritou com ela: Fica quieta para não pôr em risco a negociação… Não sai de casa. Aguarda. E desligou o telefone.
É a beleza, outra vez. A beleza…Se ela se espalha, ilumina e enquadra uma mulher ou um homem, um animal até… Não adianta divagar. Há que haver dureza, dor e paga. Apenas a beleza não basta; hediondo preço que devora. O que estaria afinal acontecendo?
Olha as fotos espremidas entre o vidro e a mesa de jacarandá. A sala apertada. Duas cadeiras ladeando. Nenhum quadro naquela parede. Perto da janela pratos antigos: tantos! Coloriam aquele lado. Na outra, uma janela, e a porta abre para a sacada estreita com folhagens, sem flores. Nada que precisasse demorar no cuidado, nem um gato. Uma poltrona, almofadas. O cheiro de pó. O armário tinha prateiras externas com livros. Olhou pra porta entreaberta do banheiro. Sem ventilação, branco, mas, escuro assim mesmo, opaco, com bolor no teto.
Encolhida na cama turca olha seu universo, e, bebe a cerveja, come as pipocas. Desliga o rádio.
Talvez alguém quisesse saber o que sentia enquanto a noite avançava. Talvez o telefone tocasse enquanto a noite sumia. Não sabia se podia dormir ou deveria apenas esperar para saber como seria o desfecho disto tudo.
A filha voltaria a conversar com ela? Ia querer saber o que fazia? Nunca se importou. E se morresse neste sequestro? Fosse abusada ou coisa assim. Deixariam que fosse enterrá-la, que chorasse como os outros? Haveria um corpo para velar? Guardou mágoas telefônicas, aliás, o silêncio.
Era ela, a mãe, a única responsável pela catástrofe toda que se seguiu? Péssima mãe, mulher vil, companheira tresloucada dizia o marido. Ele bonachão, debochado, prepotente. Bom pai lhe dizia a filha. Carinhoso, zeloso, confiante, fiel. E todos estes adjetivos seguiam a um olhar recriminador.
Foi a reação dos filhos, dos amigos afastá-la. Deveria, depois destes impasses, assinar os papéis; terminar com tudo de uma vez e viver em paz a vida escolhida.
Não, uma única vez entestou posição, mas não fez nada. Direitos são direitos. Há que entender o destino e o outro. O dinheiro é o dinheiro. Ponto.
Uma noite terminou.
Uma noite. Um dia inteiro presa. O vazio e o nada. O medo traduz pânico. Pousada no escuro, na fome. Batida pela chuva. Trovões. Molhada sem poder mexer o corpo. A fresta da madeira deixou entrar enxurrada… Lavou o chão de barro do quintal deste térreo. Gelada. Não há som na garganta. A fome de luz e calor devora o corpo que se contorce. Observo o corpo: cada pedaço dela vem chegando vivo na memória. Engolir a lembrança. Pra que serve a boca, a língua e os dentes? Estala entre a saliva e o sonho o último sorriso. Imagina o riso de cerimônia tímido que esconde o agrado que vê.
É a beleza corrompida pela luz da própria beleza. Peito e pernas espremidos. Olhos abertos, na luz arregalados pro medo. O que apaga o pavor? Um revólver gelado. Tortura do riso com lágrima; engasgado medo.
Volto à placenta quente do útero materno. Bebe champanhe ou fel? Conforto sonoro da chuva. Chove agora e aqui. Também chove onde ela está… Não sei. O telefone não tocou. Já é outro dia. Metade de dia novo. Não vou escutar a memória. Esta memória esquisita, desvairada que se esconde e se espraia…. Seca, quieta, feia, sem dor. Arrancada a beleza na espera insana do dinheiro que tarda. O dinheiro sempre se arrasta na noite, no dia… Sujo, novo, esquecido ou não. Guardado no colchão, espremido da mão. Esquecido na gaveta…
Está com fome. Tem sede. Sente medo. Não vai trabalhar.
O telefone tocou, outra vez o marido, engasgado. Gritou com ela sem motivo, choramingou um pouco. Sônia não respondeu, escutou:
– Estamos fazendo tudo. É dinheiro. Muito dinheiro. Estou desesperado. Tempo curto. Fica quieta. Vou resolver…vou resolver. Não sai de casa. Fica quieta, Sônia. Se te chamarem, não diz nada, não sabes nada.
Abriu a janela pro nada, um corredor estreito entre o este e aquele edifício; a luz meio de lado querendo espichar. Molhou os verdes presos na grade da sacada. Botou leite na caneca e pegou o pão da geladeira. Comeu em pé entre a poltrona, a cama, a mesa e a cozinha: fogão de duas bocas, pia com bancada, a geladeira e uma estante de variedades como mel em pote, ervilhas em lata, macarrão no pacote, queijo ralado, pão ensacado e as panelas. Nada escrupulosamente limpo. O que fazer o dia inteiro? Hoje, certamente, não venderia nem alugaria nada; sequer gastaria em condução.
Depois da noite sem dormir… Encolhe as pernas e puxa as cobertas. Faz frio nesta primavera de chuva, de vento. Faz frio.
Dormiu a tarde inteira. Acordou. Uma batida seca na porta.
Vestiu o casaco para proteger o corpo. Normalmente ninguém entrava no edifício sem avisar. Seria Julieta?
Abriu e ele entrou acompanhado de uma mulher. Ele o pai da sua filha. Já uns três anos ou quatro sem o ver… Parecia mais jovem, mais magro, mas os cabelos estavam brancos. Vestia um terno cinzento escuro e o colarinho da camisa aberto. Uma pasta de couro com muitos fechos na mão. Olhou para ela constrangido sem saber como começar.
Sonia perguntou:
– E Antônia? São notícias de Antônia?
A mulher passou a mão na saia, largou a bolsa na poltrona; e abriu uma pasta que trazia em baixo do braço. Onde posso colocar os documentos?
– Que documentos? Olhou intrigada. Mas já empurrava a coleção de pedras esparramada no jacarandá.
– Coloca aqui. E ficou muda esperando decidirem-se a explicar.
– Acertamos tudo, e já entregamos o dinheiro. Soltaram Antônia que está no hospital fazendo exames, recuperando-se do susto. Foi apenas um susto. Não aconteceu nada com ela. Ninguém a maltratou. Fomos eficientes: falei com ela duas vezes por telefone e acompanhei pacientemente. Largamos o dinheiro no lugar combinado e largaram Antônia no lugar combinado. Sem violência. Transcorreu normalmente. Precisamos, é claro, manter o silêncio para que ninguém corra perigo. Como sabes, às vezes, o medo enlouquece, mata. Vamos evitar a tragédia.
Fiz um empréstimo no banco, alguns amigos ajudaram…Consegui o dinheiro todo. É claro, comprometemos tudo. Elizabeth M.B. Mattos – texto encontrado, perdido. Escrito em Porto Alegre. Encontrado hoje, junho de 2020. Torres