mimada

tão mimada pela boa saúde que a irritação chega com uma trava na garganta, um soluço, um peso nas pernas, o desejo de encontrar na magreza a vitalidade, vitalidade! suponho que ela se esconde brejeira para me espantar

as horas de sono e as horas de insonia são como uma manta de lã tricotada por mãos insperientes: uns pontos frouxos abertos ladeiam aqueles outros nervosos e apertados, as franjas são irregulares e o colorido das lãs desorganizado, desenha um trabalho curioso, não uma coberta.

que importa? é a minha manta preferida, enrolo os pés que ficam gelados no meio do calorão! quanta incoerência num dia sem pessoas, sem fala, sem sentido. Talvez eu devesse mesmo arrumar um trabalho, um fazer que fizesse método na desordem deste tempo escabelado da velhice. mas eu me contraponho, nego com vigor a tal precaridade da idade: sigo as vontades festivas da velhice da Ônix, assim a minha peludinha decide o horário de passear, de dormir e de acordar. O acordar me parece ser o mais trágico, justo quando aquela boa preguiça me gruda na cama, ela insiste, exagera na urgencia de me fazer sair da cama. Não basta abrir as janelas, alimentá- la, levá- la para caminhar ou sei lá o que mais, não permite que eu volte para cama, voltar para cama, de jeito nenhum… Então, sonolenta faço o meu café, tomo os remédios e me sento para ler o jornal, ligo a telrvisão na Joven Pan e vou olhando para a cama e para os travesseiros a pensar numa estratégia! uauuu…como é muito cedo e fresco, e silencioso, molho as plantas… e vou jogar paciência. Ela, volta a dormir. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2023 – Torres

aspirações e ambições

“Quanto mais eu própria envelheço, mais constato que a infância e a velhice não somente se relacionam, mas são, ainda, as duas fases mais profundas que nos é dado viver. A essência de um ser nelas se revela, antes ou depois dos esforços, aspirações e ambições da vida. O rosto liso de Michel menino e o rosto burilado do velho Michel se assemelham, o que nem sempre era o caso dos rostos intermediários da juventude e da idade madura. Os olhos do menino e os do ancião nos olham com a tranquila candura de quem ainda não entrou no baile de máscaras, ou dele já saiu. E todo o intervalo parece um tumulto vão, uma agitação vazia, um caos inútil pelo qual tivemos de passar sem saber por quê.”(p.189) Marguerite Yuorcenar Arquivos do Norte

9 de fevereiro de 1968 – Ireja São José- Porto Alegre

agora, a virada

vai, vem, volta, segue,

pare / interrompa o sentimento de dívida

o passado se sustenta importante / majestoso, eu sei.

agora! e este hoje? o que eu faço?

se não estás comigo o dia se esvazia.

jeito esquisito

picado viver: coragem, tenho que seguir.

“Todo nariz humano cheira imediatamente o doce aroma da independência, hábito de comando, hábito de escolher sempre o melhor para si, o leve desprezo pelo mundo e constante e consciente responsabilidade pelo poder, que nascem de uma renda certa e volumosa. Percebe-se pela aparência de uma pessoa dessas que ela é nuyrida e diariamente renovada por forças selecionadas do mundo inteiro. O dinheiro circula em sua superfície como seiva numa flor; não há empréstimo de qualidades, conquista de hábitos, nada que seja indireto ou de sehunda mão: mas destrúa-se a conta bancária e o crédito, e o homem rico não só não terá mais dinheiro, mas no dia em que se der conta disso, será uma flor murcha. Com a mesma evidência com que antes se percebia a qualidade de sua riqueza percebe-se, só agora, a indescritícil qualidade do Nada nele, que cheira a uma nuvem chamuscada de sinsegurança, inconfiabilidade, incompetência e pobreza. Portanto, a riqueza é uma qualidade pessoal, simples, que se destrói quando decomposta. Mas o efeito e as funções dessa rara qualidade são extraordinariamente enredados e exigem força psíquica para serem dominados. Só gente que não tem dinheiro imagina a riqueza como um sonho; pessoas que o têm, em todas as oportunidadees em que encontram pessoas pobres, afirmam que ele ele é um grande incômodo. […]

Outra dificuldade não pequena para as pessoas ricas é que todas as pessoas querem dinheiro delas. […] E por que, afinal, somos admirados e amados? Não será um mistério difícil de entender, redondo e delicado como um ovo? Seremos mais sinceramente amados por causa de um bigode do que por um automóvel? O amor que em alguém despertamos por ser um filho do sul, moreno de sol, será mais pessoal do que aquele se desperta por ser filho de um dos maiores empresários?” (p.299-301) Robert Musil O Homem sem Qualidades

Cada parágrafo, cada reflexão, cada sentir se sacode na leitura. O que escuto / leio: o poder, o gosto do poder arde e atrai. Que seja! Como fazer rodar este março fervente? Abraços preguiçosos se concentram em projetos. Vamos conhecer a China e sentir o valor. Como se espantar com a Suiça?! Ah! O poder! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2023 – Torres ainda quente. Seria bom dançar, passear e se refestelar em risadas: não consigo achar engraçado. Vou seguir / arrumar este hoje sem projeções. Penso / reafirmo o passado / o vivido. Foi dádiva agarrada na danada da juventude. Envelhecer tem um preço amargo e rasteiro / nossas esquisitices crescem… Bom ler um bom livro: aumenta / agiganta percepções, ou faz pensar um pouco mais.

desorganizado e precário

nunca suficientemente longe,

definitivo, não é decisão

o palco segue iluminado

alguns impactos precários

o esforço é pífio diante da montanha

preciso de todos

as soluções tropeçam inoperantes

assistir o fim, sem poder interferir, o lamento

o lamento se faz lagoa despovoada

as lembranças importam, mesmo as preguiçosas

estamos todos cansados. E.M.B. Mattos – março 2023

Garopaba

Meu querido: tu escolheste perfeito. Perfeito lugar para estar. Os ventos quentes e este mormaço, este ar raro te leva pro mar. O melhor mar. Eu perdi teu jeito, tuas palavras, e não sei mais dos pequenos prazeres, nem das aventuras de caçar, ou namorar. Da mesa farta… Nem pastel nem sonho. Perdemos o jeito de conversar. Estamos, ficamos amordaçados. Eu, eu sigo pensando em ti. Tenho aquela vontade saltitante de te dizer coisas… tanto quis te ver! Polir a casa, lavar os cristais, encher a geladeira com coisinhas surpresas, lençóis perfumados… Por que não ousamos? Faz tanto calor que estou a delirar, desculpa. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2023 – Torres

Romain Gary

Au-delà de cette limite votre ticket n´est plus valable

” Et j’ai toujours eu le goût des jardins secrets et des mondes à part. J’aimais cette complicité profonde à deux où personne n’ est admis. Tout ce qui est ‘réputation’ dans ce domaine est fin du merveilleux. La vraie maison de l’amour est toujours une cachette. La fidéliteé n’ était d’ ailleurs pas pour moi un contrat d’ exclusivité: elle était une notion de dévouement et de communion dans le même sens des valeurs.”(p.9)

sempre no escuro

a gente consegue decidir, e até se esquivar, dirigir aqui e ali… comprar um vestido, escolher um lenço, comer beterrabas, embalar, amamentar, mas depois, depois, depois…

qualquer coisa define a noite, o frescos, o pânico, e o sol. não sei o porquê estou solta assim, desorientada. preciso ser empurrada.

…ou a força é de dentro, faz sentido esperar tua palavra? nada muda nada

o impulso da mágica… se eu pudesse te explicar, bem, eu encheria teus bolsos de sementes, empacotaria o possível. Aos poucos, surpresa após surpresa! Vais descobrir que vale! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2023 – Torres

Escribo. Escribo que escribo. Mentalmente me veo escribir que escribo y también puedo verme que escribo. Me recuerdo escribiendo ya y também viéndome que escribia. me veo recordando que me veo escribir y me recuerdo viéndome recordar que escribía y escribo viéndome que recurdo haberme visto escribir que me veía escribir que recordaba haberme visto escribir que escribía y que escribía que escribo que escrevía. Salvador Elizondo, El Grafógrafo janeiro de 1978 – Montevidéo –

in La Tia Julia Y el escribidor Mario Vargas Lhosa

madrugada

Uma delícia o ar da noite! Se pudesse ficar no jardim, seria a melhor hora… Acordei de um sonho com as amigas da Tânia: chovia e nos divertíamos muito. Hospedadas num lugar de campo, confraternização! (detalhe curioso, as amigas da irmã) Risadas. E penso que moramos juntas. Foi colorido!

Ah! Perfeito quando a noite entra pela janela! A Ônix foi se refestelar…Falei com o João… As preguiças das noites! Mas já está descendo outro sono! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2023 – Torres

Foto diurna.

fio esticado com luz

Obviamente, escrever cartas quase nunca é um ato inteiramente solitário. À excessão do nacisista, que na verdade escreve para si mesmo, o outro está sempre presente – uma fotografia sobre a mesa, uma flor seca entre as páginas de um livro, uma imagem guardada na memória -, esperando ser informado, corrigido, agradado – acima de tudo agradado. Como vimos, não há dúvida de que para a literatura do século XIX, modernizando Cícero, escrever uma carta era praticar um tipo de conversação. Mas seria uma conversa verdadeiramente espontânea? […] Qual o preço da sinceridade? Uma vez que alguém adquire conhecimento suficiente e experiência do mundo, as fórmulas usadas para agradar os outros se tornam uma segunda natureza, tão automáticas que não exigem hesitação ou reflexão. Contudo, isso não significa que uma fórmula habitual seja um gesto de hipocresia, uma emoção manipulada. Tampouco obscurece o espírito de quem escreve uma carta. […] Há uma pergunta antiga, só em parte engraçada: ‘Como posso saber quem sou antes de ler o que escrevi?’ Ela contem uma verdade importante: escrever cartas pode ser um exercícop de autodefinição. Por isso, qualquer que seja a forma dessas cartas, natural ou afetada, elas podem ser fragmentos de uma grande confissão.” (p.356-367) Peter Gay O Coração Desvelado – a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud