Re talho

Depois que nos falamos o corpo despertou inteiro. Devo acionar o computador para começar a escrever uma carta, e enviá-la às pressas. Contudo, exausta insone sinto apenas o borbulhar do desejo retalhado. Entra  no sangue: sentimento emoção. Transfusão. Desejo! O pecado leva ao inferno. Toas as cartas de amor são  ridículas, já  disse Fernando Pessoa, e não seriam de amor se assim não fossem, ridículas. Janelas sacodem acompanhando o vento, cortinas levantam. O ar gelado entra. Pálpebras descem pesadas. O corpo cai no sono, respiração solta. Estamos encolhidos nas cobertas. Um dia, não mais do que este dia. E, vestindo as roupas devagar, já nos vamos despindo um do outro. Silêncio. O corpo incha no calor, depois murcha como fruta passada… Resseca e aquieta. Envelhece. Elizabeth M.B. Mattos outubro de 2012 – Porto Alegre

Sándor Márai

 Era da raça de Chopin, ou seja, era uma criatura cheia de reserva e de orgulho. Mas no fundo da alma ocultava um impulso espasmódico: o desejo de ser diferente do que era. É o tormento mais cruel que o destino pode reservar ao homem. Ser diferente do que somos, de tudo o que somos, é o desejo mais nefasto que pode queimar num coração humano. Pois a única maneira de suportar a vida é se conformar em ser o que somos aos nossos olhos e aos do mundo. Devemos nos contentar em sermos feitos de  uma certa maneira e em sabermos que, uma vez aceita essa realidade, a vida não nos louvará por nossa sabedoria, ninguém nos conferira uma medalha de honra ao mérito só porque nos conformamos em ser vaidosos e egoístas, ou calvos e barrigudos – não (…) Devemos nos suportar tais como somos, esse é o único segredo. Suportar nossa caráter, nossa natureza profunda, com todos os seus defeitos, seu egoísmo e sua cupidez (…) Devemos aceitar que nossos sentimentos não são correspondidos, que as pessoas que amamos não retribuem o nosso amor, ou pelo menos não como gostaríamos. (…) eis algo que apreendi no decorrer de setenta e cinco anos aqui no bosque.

(p.106)  Sándor Márai in AS BRASAS

Paulo Hecker Filho: Príncipe de Porto Alegre.

Torres, 03 de abril de 2012. Estou aqui sem ânimo, amarrada na vidinha de ir, e ir se amarrando ainda mais. Relendo tuas cartas dou-me conta que a energia se perdeu, pudesse eu recorrer as tuas palavras, ao teu talento amigo! Sinto-me partida. Eu te escrevia meio a febre do momento, acreditava em mim mesmo, e acreditando conseguia dizer o que sentia. Releio uma carta tua de 09 de março de 1999.

Beth: Depois de quatro laudas cheias, dizes: ‘Ando exausta emocionalmente e, portanto, não faço nada. ’ E as quatro laudas? Fazer um pouco, seriam dez? Beth ou o turbilhão. Além do que ficou equilibrado o teu passeio-carta por aquele livro de arte. Se bem que não era o combinado. O combinado foi um romance. Pelo menos uma novela. Pelo menos um conto. A idéia é que isso – ser objetiva ou artista – ajudaria a pôr as emoções no lugar.  Nesse ponto, não é de contar com os outros, a gente tem de resolver consigo mesmo.De alguma forma enfim o resolves na carta passeando por sedas e cores à altura delas. Brava Beth.

Pois é nisso que preciso acreditar, que eu posso. E tu estavas doente! Sem medo. O Príncipe de Porto Alegre! Que saudade!

Limousin

Ainda sobre a França. Não é verdade, mas aconteceu. Desci em Paris, e fiz tudo como precisava ser feito: pegar o ônibus, depois o metrô, e chegar no Bulevard Saint-Germain  antes de anoitecer. No outro dia caminhei, caminhei, e me perdi. De metrô achada, e perdida, outras tantas vezes. Não vi o que deveria ter visto, mas vi meus fantasmas todos. Vi o Sena. Certeza de que estar ali era parte do sonho, tão velho que foi tudo embaçado! Apenas senti que estava  na França, em Paris. De noite, sonhei com o pai e com a mãe juntos, em casa, na Vítor Hugo 229. Acho que já te contei isto. Não pude fazer um diário. Escrevi algumas cartas. Não comprei cartões, nem presentes. Não bebi todo o vinho que queria, nem vi Paris à noite. Revejo  neste momento a universidade de Limoges, a casa da Juliette, o cachorro enorme, a praça. Os amigos: Jean-Jacques. O almoço na beira rio. Livros. Museu. Caminhada. Igreja. Trabalho lento. Não vi tudo o que precisava ver, nem estudei o bastante. Conversei, olhei para o céu. Igual. Igual ao nosso. Nos campos a diferença. Campos de girassóis, ou flores, ou o calor, ou a limpeza, o cheiro das pessoas, os parques.  Também as montanhas de pedras amarelas ou rosadas. Conheci  a região Haute Vienne onde fica Limoges, a cidade da Universidade, Corrèze, Dordogne, Périgord et  Quercy : Domme, de Henry  Miller e Anaïs Nin….Henry Miller escreveu: Só num rápido olhar pelos rochedos escarpados por sobre o escuro e misterioso rio em Domme…vale por toda uma vida. Collonge La Rouge: edifiée de grès rouge, elle offre au promeneur des émotions architecturales brutes. Comme cette cité est petite…mais il y a une église romane superbe. Autour du village, quelques sentiers vous feront voyager dans ces paysages de chênes truffiers et de calcaire, de noyers et de châtaigniers.[1] É estar no campo, no centro do mundo: vi as cavernas… e Beynac- et – Cazenac, Souillac, e Sarlat (toda dourada comme Domme) que eu adorei (para querer voltar) com a sua feira atravessando a rua principal, os cafés, as ruas estreitas, becos, saídas, cantos, floreiras, encanto. Les campagnards, a fonte com água potável, a praça e o rio La Dordogne: a região ora um Van Gogh ora Seurat (sem os maillots listrados) – Dordogne et Périgord foram as regiões que eu conheci depois do Haute Vienne. Verão. Aqueci a alma num tempo que pareceu maior do que realmente foi. Vinte dias enormes, pesados, tensos e maravilhosos. Como explicar? Vivi. Emagreci um pouco. Voltei atordoada. É um jeito de contar?! Não sei. Foi tanto e foi pouco, mas quero voltar… Logo. Logo. Não fiz o caminho da peregrinação normal… Não fui ver Saint-Michel, na Bretagne, mas fui a Rocamadour: un des hauts lieux de la chrétienté. Cette merveille naturelle et spirituelle reçoit de pèlerins. Le site est fabuleux. Il y a la forêt des singes et le rocher des aigles. Le paysage, la vierge noire et le souvenir de l ‘épée de Roland, “Durandal”, qui fut conservée en ces lieux jusqu’à ce que  Henri Court Mantel, pendant la Guerre de Cent Ans, vienne piller ce lieu saint, sont les attractions principales de ce deuxième  site de France, après le Mont Saint-Michel. Les grottes et les maisons abritent deux millénaires d’histoire, de miracles et de ferveur, et l ‘architecture s’en est  largement imprégnée. Rocamadour est à découvrir la nuit lorsque la lumière jaillit du paysage et lui donne un aspect fantastique presque irréel.[2] Fixei residência em Limoges, capital do Limousin (região), e tenho em cada passo a lembrança de uma vida campagnard.  É todo aquele pedaço de vida na fazenda.  Poderia morar no verde, certamente eu poderia.  Mas já estou em Torres. As baleias já chegaram. O calor veio. Mas hoje faz frio. O mar está limpo, e as calçadas vazias, como eu gosto. Um noite eu durmo, na outra fico penso. Quero mais para mim… Tanto eu quero! Voltar pra ver Paris que eu ainda não vi… Elizabeth M. B. Mattos – outubro -2012 – Torres


[1]  Le Guide Dardogne Périgord – Fanlac

[2]  Idem.p.244

Armadilha amorosa

A expressão do homem, suas vozes. O som do ser humano, o gesto, o andar, o escutar, mais uma vez o som genérico das vozes que não cantam soltas, nem livres, mas engajadas nos espaços permitidos, decodificadas por outras vozes.  O homem entre outros homens: dizemos para ser ouvidos, escrevemos para ser lidos, e pintamos para sermos vistos, fazemos música, e compartilharmos o Eu. Um Eu que se formou de experiência, e leituras absorvidas. Este mesmo homem quer, então, participar. Agir e fazer através da escrita: expressar. Escrever nunca é a cópia do que já foi feito, ou, pelo menos não deveria ser. Escrever é instalar-se na recusa do estabelecido. O ato de escrever supõe coragem. Mas escrever assegura mudanças, implica em não se deixar apenas ocupar. Interiorizar-se, observar, mas participar de uma forma contundente do mundo. Reconstruímos, e ou alteramos o estabelecido. Escrever é registro da intenção. O texto, espaço expressivo de quem escreve, é sedução. Seduzir requer toda uma aventura: admitir a necessidade de um propósito. O corpo do escritor se junta ao corpo do leitor num abraço  que busca a resolução do amor.  Assim, a atividade de escrever insere-se entre as outras atividades sociais.  Escrever, então, é fugir da alienação. Escrever é armadilha amorosa. Elizabeth M.B. Mattos –  outubro de 2012  –  Porto Alegre

O Guardador de Rebanhos

Alberto Caeiro

1911-1912 (…)   IX

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

Com as mãos e os pés

E com o nariz e com a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.

(…) Fernando Pessoa, in Ficções do Interlúdio

Escrevendo para PAULO HECKER FILHO

Como já comentei contigo outro dia o inferno somos nós no espelho. Para não ver o fogo ardendo, não escutar os gritos desesperados, não rever os corpos contorcidos sangrando, abrindo, ou uma criança em chamas correndo… ou os acorrentados, ou cães espedaçando outros cães, não  devemos nos olhar ao espelho. Aplaca as dores e os maus sentimentos. Assim, olho, gentilmente, para os lados: jacarandás, cinamomos com flores, carros com pessoas, janelas iluminadas, cafés falantes, cães de raça enfeitados. Bebo a água da garrafas plásticas displicente  caminho pelas vitrines. Visto as roupas pretas, procuro os lançamentos de livros em novas edições que se multiplicam! Isto é o mundo hoje e agora. E, viva o Juremir, homem do jornal Correio do Povo! Expressão de menino! Quem pode dizer que consegue vender a alma em cada linha?! Ele é bonzinho? Ou vai nos ajudar a ver o mal e o homem mau? Viva Juremir na crônica de domingo. A novela das oito a ser acompanhada como lição? E os contos de fada voltam a ser editados em versão televisiva!!!!! Censura em horário aberto? Nosso Tavares precisa ser mais ativo, alerta, aguçado! Décio Freitas era estudioso, lia bastante, sabia das coisas. Paulo, meu querido, será que logo seremos todos bonzinhos? Gostei. Eu sou boazinha: triste, feia, aflita, mal amada, mas boazinha. Vou ao cinema bem festiva, e volto pra dormir cheia de idéias. Boazinha!!!! Logo me cairá do céu o maná e o emprego. Mas, não era nada disso que ia te escrever. São aqueles desejos corruptos que temos lá dentro: aquela gana presente de tudo querer e poder: o vinho bom, a carne macia, o salmão, as cerejas naturais, o branco nos estofados, as porcelanas na mesa, e o riso de poder. As sedas!  Adoro a roupa bem cortada, deslizante num corpo magro e bonito. A alegria do pátio e do peixe no aquário das crianças, os cachorros também no sofá. E por que não os gatos? Mas, não vais me contrariar: todos cheirosos. E, da cozinha o bolo de laranja com cenoura, ou recheio de ovos moles nas caldas doces e nas ameixas. Frutas sem tóxico, as laranjadas feitas na hora, jarras transparentes amareladas e roxas. Isto é agora. Ou não existe mais? E não te contei ainda que o desejo vai crescendo e quando explode não é mais nada. O desejo se desfaz no limbo do outro quando ele tenta, o outro, nos presentear para aplacar o desejo, satisfazer, nos fazer felizes, ora! Mas ele não está aqui. Fica, na mesa, o presente.  E eu volto a querer  por perto o Mário de Almeida Lima e as conversas com pão quente, escapadelas das voltas de ir ao banco, das idas pra casa, dos presentes livros que guardei nas mãos num prazer de toque maior do que qualquer outro prazer. Como teus livros, ou a revista chegando na caixa do correio. Dia de festa; mas não leio nada até esquecer tudo daquela maldita alegria. É um momento depois do outro. O livro é meu, tua letra, dedicatória pequena fica lá; espera por mim, a poesia. A tua poesia. Mas, como já te disse, repito, o inferno somos nós mesmos. Queimando, sufocando, desejando e querendo a água, o alívio. E o desejo que o outro seja despejado no nosso corpo em forma de prazer. Queremos a própria vaidade de sermos amados em gozo comprido. Para isto ficamos bonzinhos, solícitos, generosos, sorridentes. Aceitamos. Quero flores, tortas chegando em casa, uma caixa com surpresa, um lenço colorido pro pescoço, e as vaidades todas femininas que não me alcançam… Leio o jornal e alguém escreve que o autor X é muito bom, e o outro reafirma o Y é melhor. Quero os dois. Fotos, alusões: desejo vem como brotoeja. Livros espalhados pelo chão…, alívio porque logo estarás aqui. O Mário proporcionava alegria livresca: o Bechara, a correspondência da Anais com o Miller, em francês, Flaubert, em português, as cartas. E, também,  o amigo Faraco com o livro Lágrimas na chuva, na prateleira, sem ler…Esperando o final da história que era um autógrafo, uma fala, eu não sei. Droga! Por que  tinha que passar assim tão depressa por mim o meu amigo? Eu o invoco para que me ajude, ordene meu caos, estude comigo, faça o tema, tome café preto, olhe pra mim. Mas não está aqui. Era o tempo de  Porto Alegre generosa. Água mineral, o café preto, até sorvete da Parmalate na beira da calçada: um homem.  E ele tá lá escondido dentro de mim… E assim fazemos com o desejo, deixamos preso, escondido, ou desfazemos devagar. Não quero ter as pratas, ´e só vestir roupa bonita, mas ser jovem outra vez, ter cadeira pra sentar prosaicamente. Quero não ter contas pra pagar, não pedir dinheiro emprestado, vender tudo. Fugir? Olhar pro mar, e ficar lá quieta, feliz. MAR existe. Vez que outra atravesso um texto inteiro feito uma agulha de ponta rombuda com linha grossa que vai e vem fazendo bordado por cima. Foi assim que eu li O PRISIONEIRO DE GASPRA. Gostei tanto! Gostei tanto que te confesso Paulo (isto é segredo de Estado, apenas nosso), fui eu quem escreveu o conto, e mandou pro Faraco publicar… Está tudo aqui dentro, de verdade.  Vejo tudo como ele descreveu, menos a mulher, pois se sou eu a mulher que vê, não tenho homem passando e entrando na minha vida, lendo jornal, vendo futebol, fumando, olhando  para a comida pronta da mesa e saindo outra vez. Não tenho aquela sombra masculina na vida, mas, grito, grito pedindo socorro. Sinto a esperança, esperança igual. Finjo que alguém me ama sem que eu saiba e essa pessoa me espera, como Penélope esperou Ulisses. E finjo tanto que, às vezes, passam-se três dias e três noites, sem que nesse tempo eu veja a casa, o subúrbio, a agência de correios (…).Quando paro de fingir, quando regresso a mim, me dá uma angústia tão funda, uma vontade tão forte de gritar… A esperança de que, pensando no que penso que escrevo, meu pensamento alce voo  pelo escuro deste espaçoRepara, Paulo, que ali no texto tem um você que eu chamo, na minha vida real de marchand, e fico esperando que esta pessoa escute o que eu digo e sigo, assim, como no conto: Pode ser que você, na amena noite terrestre, sinta um frêmito, um estranho calor e diga a nossos amigos que sonhou comigo, que no sonho estou longe, sozinho num lugar do qual nunca ouviu falar, num lugar que só existiria num sonho. Mas pode ser também que você  suspeite desse sonho e faça alguma coisa. Pode ser que embarque numa nave espacial ou contrate um advogado ou faça uma promessa ou qualquer outra coisa e venha me buscar. Paulo, vês como eu escrevi exatamente na medida que o Sérgio aceitou. Piegas eu estou sempre a pedir beijos, abraços, afagos, presença, carinho quente, isto ele cortou do meu texto. Na vida real não acontece Paulo, fica tudo preso na imaginação e nos bilhetes. Envelheço, seca como a pereira da Katherine Mansfield, lembras? O conto A felicidade? Que lindo! É este? Mas o meu conto que o Faraco publicou termina assim, lindo! E eu repito num  novo grito Pode ser que embarque numa nave espacial ou contrate um advogado ou faça uma promessa ou qualquer outra coisa e venha me buscar. Como eu gostei!! Como eu escreveria tudo de novo: Gostaria que você soubesse que estou longe, sozinho num lugar do qual nunca ouviu falar, num lugar que só existe num sonho. Mas se você não pode me ver nem me ouvir, como saberia? Tampouco espero que leia esta carta, embora eu pretenda enviá-la. Só um milagre, não é? Tamanha é a distância ente nós, que é como se você também não existisse e fosse outro sonho. Se você pudesse acompanhar meu dia-a-dia, diria que é o que sempre foi e cada coisa está onde sempre esteve. Sim, tenho uma casa em que tudo se assemelha àquela que eu tinha. Mas o lugar – você acredita? -, o lugar é outro e, em meus delírios chego a pensar que transportaram a casa no guindaste de uma nave espacial. E não só a casa. (…) Paulo, não posso escrever tudo de novo, o Sérgio vai ficar furioso comigo, afinal, o conto saiu como inédito na ZERO HORA de sábado, dia 18 de setembro de 2004 no Segundo Caderno. Não esquece de mim. Vou mesmo estudar até dezembro como retomas na tua última carta e fazer concursos. Tens razão: “ não tá muito Beth” mas aceitas. Obrigada pelo estímulo, é meio assombração este tempo… E, das angústias saem os textos, as inquietações e os meus gritos desordenados. Então vem saudade do amor que me fazia chorar, resmungar, gritar, discutir, enfim, estar viva. Contrariar, pensar, remexer junto nesta ferida do mundo. Sigo teu conselho quando limpo a casa passando aspirador, esfregado os vidros, molhando as plantas, limpando as pratas, ou cozinhando. Depois vem a angústia de novo. Diz minha filha Ana que está escrito na roda de todos os filhos a certeza de que conseguirei. Dos teus livros não há engano. Os poemas desfilam pelo jornal e passam de boca em boca preciosos. Eu, eu fico meio engraçada de escrever sobre isto. Mas, vou fazer de um salto. Reler o primeiro, e ler o segundo num mergulho sem soma de letras ou som; enfiada dentro de cada um deles pra cheirar tudo e sentir tudo, depois volto a te escrever. Eu vou fazer sim. Um beijo. Obrigada por escreveres. Tu sabes que eu sinto saudade das presenças que já se foram como a do Flávio, Iberê e Mário. Tu estás aqui comigo e isto aquece.

As passagens em itálico são do conto O prisioneiro de Gaspra de Sérgio Faraco.

Conselho de Paulo Hecker Filho em carta

P. Alegre, 28 de setembro de 2004

Beth: Perguntas, respondo: comprido como o é  em extensão; o verbo cumprir é com u. Vais estudar até dezembro e fazer concursos, contas. Não ta muito Beth, mas aceitemos. Em geral preferes o brilho da angústia, o que é regra quando há talento como em teu caso. Mas ouve esta: para vencer a angústia não há como ocupar-se, diária e utilmente. Nem é preciso a metade do esforço que se gasta tentando vencer a angústia, pois acaba ficando fácil se entregar ao trabalho, escolhido ou achado e em que se confie. Caio pra trás com os bons comentários que chegam dos dois livros que te enviei, ainda mais que estava meio em dúvida com eles. Decerto a boa repercussão se deve em parte à idade e à insistência; mas como citam trechos, mostrando ler mesmo, me enganam…Esse último parágrafo deixei sair para te empurrar a ler os dois livros, os dois, e depois me contar se sobra algo.  PauloHFilho

A DONA DA HISTÓRIA

Levanto cedo, faço café preto, como pão com manteiga, mel. Lavo aqui, escovo um pouco ali, molho as plantas, e estudo. Aspirador. Mesa com lustra móveis, outro dia  não faço nada. Precisas ver minhas mãos!  Escrevo cartas, conto histórias, e o dia termina sem voltar aos teus poemas. Imaginação, promessas de  tempo que não chega, o amor. Não quero aceitar, mas aceito o presente, as conversas, os dias marcado.  Aceito  e navego nela. Ver o filme “ A dona da História”. Posso até dançar!  Gostei.  Catastrófica sessão dos velhos, todas as velhas do Moinhos de Vento reunidas. Tão engraçado! Uma levou a almofada de botar nas costas, outra carrega a outra velha, ou o velho, falam bem alto, trocam de lugar, estão arrumadas com boca pintada, faceiras. Eu mesma com o meu velho e grandalhão suéter pro frio, meias de lã, também. Não esquece que o sol está quente nas calçadas, mas é assim do quente pro frio, do calor pro bom tempo depois que o homem furou o céu. O filme? Adorei, adorei estar no Rio, estar tão jovem, beijar o Santoro estar, ainda, depois de 30 anos casada com o Fagundes podendo ir a Cuba que é Paris, Londres e Veneza ao mesmo tempo. É mesmo? E, na vida real, ter sido, mulher do Chico Buarque. Eu até chorei! E tu vais dizer que não é possível ser?!  Sou eu no cinema de um dia de sábado, com céu azul no Moinhos de Vento. Igual ao filme vestindo Paco Rabanne. Alienação, nada de passeatas, ou Cuba, ou fazer arquitetura, ser intelectual. Com a praia do Leblon, e o poder da beleza, ter vinte anos. Aquilo tudo lá dentro fervilhando. Por que não pude, então, ao menos ter amor entrando certinho assim, ficando, sendo, e terminando  no amor?! Droga! Queria estar lá no filme, fazendo cinema, colorindo tudo sem a angústia, sem medo. Livre. Nada. Estou aqui, num lugar que nem existe em mapa nenhum, estacionada em lugar nenhum, fazendo coisa nenhuma.  Então, ao acaso, leio a ZERO HORA  O prisioneiro de Gaspra  de Sérgio Faraco.