Desorganizo

O momento certo, palavras redondas. Não. O perfeito não mora aqui. Aliás, em poucos minutos desorganizo, empilho, reviro tudo: bagunçar a casa inteira faz parte da rotina. Estranheza, o bom momento. Limpar. Limpar pode ser obsessivo. Não escrevo. Amontoam ideias, ponderações, confidências. Atrasado este tempo,ou o dia de escrever, a pauta.

Chove outono. Cinzento. Devagar a saudade se acomoda. Leio três páginas. Arrumo a cama. Escrevo três linhas. Lavo a louça. Volto ao livro. Toca o telefone. Inquietude.

Vou caminhar até ao mar. Vazio. Pequeno. Estreito. Fora do mundo. Só mar. Elizabeth M. B. Mattos – março 2015 – Torres

Já é ontem

Aqui, agora, tudo me é prometido. O tempo é este momento aqui e agora. Escritores reencontrados. Inquieto-me com o dia que termina antes da hora, do meu prometido. E este olhar que nunca está onde deveria estar… Já é ontem.

“Faço a mim própria, uma vez mais, a minha Eterna Pergunta. Que é que me torna tão difícil o momento da expressão literária? Se neste instante me sentasse para escrever algumas das histórias que estão completamente redigidas, completamente prontas no meu espírito, levaria dias e dias a escrevê-las. E são tantas essas histórias! Passo tantas horas a ruminá-las que, se conseguisse triunfar do meu cansaço e pegar na pena a valer, deveriam escrever-se sozinhas, de tal modo estão prontas até o mínimo pormenor. Mas o que falta é atividade. Todos os pretextos me servem: não tenho um canto para escrever, não tenho secretária, a cadeira não é cômoda…e, contudo, e no momento exato em que me lamento, dir-se-ia que surge, precisamente o local, a cadeira que preciso. […]
…Quando se é pequeno e doente e se está exilado num quarto distante, tudo o que acontece para além desse quarto é maravilhoso…”
(p.114-115)

Fragmentos do Diário, – Katherine Mansfield– Coleção dirigida por António Ferro. Contemporâneo, Biografias e Memórias.

“– Você é esquisita, minha cara, dizia a inglesa. Tem em Sarrazac, paisagens maravilhosas; mal as vê; e, aqui, cai de joelhos de joelhos ante a menor fachada!

 –Oh! mas aqui, dizia Clara respirando deliciada o ar leve de Paris, aqui tudo é vivo, tudo é humano, tudo é quente … Tenho a impressão de encontrar todo um paraíso que perdi … Bastam os nomes: Louvre, Phanthéon, Notre  Dame! “

André Maurois, Terra de Promissão

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O Tarzã

 – Tarzã? Mas eu conheço bem este Tarzã!  É um que se balança, de tanguinha, ao longo dos cipós, gritando e bate no peito?

– Pffff!…Um minuto!  Não se sabe se ele tem inimigos nem amigos; ele dorme pouco, não bebe, nem fuma; prudente e encurvado, ele arrasta sua alta silhueta magra e desengonçada  pelas clareiras do mundo inteiro. Ademais adquiriu o estranho costume de morar onde trabalha, nas próprias obras em que dirige homens e máquinas.

 – Queres chamar o Tarzã?

Notícias pelos poros. Frio e calor ao mesmo tempo. O poder onipotente é o foco. Feiticeiro ou sábio.  O Tarzã, o meu.  Fazedor de mágica,  anedota, estória. Aquele que merece a fama cria invejosos.

À tardinha, depois da sesta, no momento em que o sol começa a se pôr, o feiticeiro  interroga acerca de coisas obscuras e complicadas, repetidas vezes. Fatos se agitam, tresloucados, e se misturam, apertam…Ironia dissimulada, a pergunta insiste. Flagrante delito de ignorância! Não sei como chamar o herói. Silêncio. Sorrindo a plateia aplaude. Elizabeth M.B. Mattos – março – 2015 – Torres

Pote e Ouro

Escrever o que não tenho certeza, ou não sei. Chegar ao âmago da confusão. Seguir às cegas. Tocar no pote, reconhecer o metal precioso, a moeda. Vale para ficção, ou jornalismo. Vale para o poeta e para as pessoas amigas, inimigas, ou indiferentes. O que se convencionou chamar de conhecimento disfarça a ilusão de saber. E o preconceito embarga, previamente, a busca interior, investigação crucial.

Retocada inquietude. Turbulência flutuante. Desgoverno. Mentirasssssstodas. Guerra: granada tiro faca tocaia. Decapitar. Executar. Aos tanques! Banquete. Carpete. Talheres e pratos, taças e vinhos, dieta, e excesso. Enjaulado preconceito. Acesa chama altar vazio. Guerra frouxa. Dele contra ele. Cinismo debochado.  Plateia estupefata, exausta de esperar, atônita. Sem medida nem jeito. Reuniões, conchavos, fotos. Descabelados crisântemos inúteis. Insônia. Tristeza sem lagrima. Suicídio e homicídio. Aonde? Em que município cidade capital estado montanha … Sem luz, sem água.  E nós inclinados diante do pote de ouro no fim do arco-íris. Elizabeth M.B. Mattos – abril de 2015 – Porto Alegre

 

Iberê Camargo

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Fragmentos de carta de Iberê Camargo.

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Iberê e Maria no ateliê da Rua das Palmeiras, Rio de Janeiro, 1971.

Pedaço, metade do documentário: Iberê Camargo. Falas. Imagens. Quadros da exposição na Fundação. Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Desenhos. Carretéis. Palavras. O escrito mencionado. Parcela. Fragmento. E o retrato pintando… Força. Intensidade. E o preto.

Verdade-bandeira de angustias internas. Pesquisa, trabalho, muito trabalho deste nosso carioca-gaúcho, o pintor Iberê Camargo. E sombras.

Lacuna evidente. O retorno. Nenhuma palavra ou imagem de Tina Zappoli, a marchand. Despovoado silêncio. Restrito final no hospital. Sem convergência, sem amigos. Era Iberê solitário, ou silencioso? Todos querem uma fatia do mito, um pedaço inteiro.

O ateliê lacrado de Porto Alegre, sem luz natural, equivocado, mas produtivo, fervente. Ele queria de volta a luz… Cartas de Iberê Camargo para Elizabeth Menna Barreto Mattos.

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Aborrecido odor

Odor aborrecido, insistente. Se você fosse absolutamente transparente, seria jasmim o seu abraço! Azedo esquisito presente, tua presença. Gosto de beijo. Beleza rasga, atravessa o cheiro. De gente, de pessoa, de homem, de criança, de mulher. Posse e violência. Facões. Correntes. Intolerância esparramada. Poros abertos! Suor fechado, trancado. Sinto. Recuo.

Se não fosse dito, ou falado. Apenas o suave cadenciado, manso, da sua voz. Passos miúdos. Corpo leve. A pequena morte agônica. Triste. Inodora.

Esta quantidade enorme de dobras. Gordura, excesso. Qualquer gesto, um transtorno. De repente respirar pode ser assim aborrecido, insistente. O olhar se debruça, volteia, rodopia, abre e fecha, inúmeras vezes, as persianas pesadas. Luz. Mais, muito mais do que a luz, sombras…

Um ranço de fritura, bife, ou frango? O chocolate grudado no fundo da panela. Bananas fritas com muito açúcar.

Os talos destas flores esquecidas. O cheiro avança colorido. Fedorento, estranho odor aborrecido, insistente. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2015 – Torres