surpreendida

Morte. Violenta sacudida interna, dolorida. Passiva, quieta, atenta, ou apenas estupefata. Surpreendida? Não sei. Qualquer coisa pior ou maior. Tristeza sem caminho, no fundo do olho o chumbo. Afogo neste sol que me queima…  Feridas pelas pernas, pelos braços, sangra a boca. Palavras soltas, engajadas, arrastadas ou ordenas, sem significado, nem intenção. Um vídeo, o filme. Diminuição, banalidade: cotidiano doméstico, um fazer e um esperar. Será que neste vasto, vasto mundo da poesia, neste mundão de postal, e de tanto faz de conta de vitrines, boas comidas, e tanta futilidade, nesta enorme praça/parque de diversões tem espaço para o real?

Fiz comida. Tomei café, lavei o que ainda faltava, passei roupa e vi as notícias, as mesmas do dia na madrugada, escutei /vi: tudo igual. Não posso ler. Estou impregnada desta atualidade vermelha, rasgada, perfurada, destes buracos na terra. Desta defesa acusação. Brinquedo de polícia e ladrão. Detetive, sem herói. Banalidade a brilhar! Atordoa o silêncio. Nada pode ser dito.  Elizabeth M. B. Mattos – março de 2019 – Torres

segura o copo

Continuas na teia de aranha que teceste da tua vida.”

Na temposidade da mora.

Pedaço das conversas que se minimizam e se escondem. um jeito de espiar a guerra de todos os dias, e a distância que não está em gala, mas enfiada nos chinelos . Ainda é verão. Isabel precisa repetir e dizer:

Ser apaixonada, amar o amor não é amar.” Francisco segura o copo, não responde, e parece que nem ele, nem ela conseguem se olhar, nem pensar. Pensar ou argumentar tem sentido de guerra, afronta. O carro estacionado na garagem, nestes momentos curiosos ela liga para uma conversa resgate, e outra de urgência. O motivo físico, a leveza, aquela alegria inconsciente que se diz natural. O reveso do verso se acorda e me espanta  tua visão. Um desenho de compra e venda / posse e possuído / poder e submissão.

No entanto nós existíamos: eu e tu – nós. Somos sombras porque nos encolhemos nas nossas pequenas covardias – limite. Isabel não consegue transformar em livro, nem em folha, nem em texto o que precisa ser dizer. Um duplo, sem-olhar, uma sombra, mas estamos exaustos, cansados, sem motivos… E os assassinatos, as mortes, os crimes, as flores os tiros, o amontado de pessoas alvo. Estamos nos preparando para morrer passionalmente, na guerra.  E faltam palavras, assunto, motivo, jeito…, o importante é que Lucia e Joana consigam dizer o que pensam. Estou fechada, e estou exposta. Tudo o que for dito se resume na maça. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 – Torres

“segura a xícara” disse C. D. de Andrade,ou foi Manoel Bandeira… , e morreu. Foi P. Hecker Filho quem escreveu este poema? Estou fazendo confusão.

Para K

Torres com chuva numa segunda-feira cinzenta. Quando acordei o mar tinha uma risca brilhante no horizonte. África com sol…, o sol que não chegou. Caminhei: o mar com espumas e ondas. Depois de termos conversado sobre a noite mal dormida, das inquietudes. Um café preto, bolachas, aquelas redondas uruguaias: Pannina, El trigal: já comeste? São ótimas, gostosas, não amolem. Manteiga e mel. Lola, minha gata cinza, pinoteando a volta. Pensamento concentrado na tua doçura. No teu ritmo, tua força interior. Sigo as marcas, acompanho o traçado. Eu te gosto. És um homem essencialmente amoroso. A calma me encanta. É pacifica. Como será que recebes a minha tempestade? Pela vidraça a chuva e os raios: a beleza. Se eu pudesse, agora aconchegar- me! Gosto de estar contigo.

O telefone. Passado e agora/hoje, fica-se tempo indefinido a pensar. Toda relação que termina continua… Quando se ama, o que não acontece sempre, existe/há dificuldade para aceitar o fim, ou o que não pode continuar, ou dividir tempo, e outras coisas que envolvem o que se nomina relacionamento, mas era/é amor. Não existe idade. Ontem o choramingo da ausência. Irrisório e inexplicável desentendimento: desassossego. Enquanto me dizia / contava/ falava ela desenhava. Misturo personagens: vida povoada a minha!  Tudo eu te digo em carta, a teclar.  Tem um traço firme, força nas expressões. Eu me orgulho. Desvios chorosos e artísticos. História paralela. Doçura e paz na relação homem e mulher, importa. Tão bom te escrever! Vou guardar o tempo silencioso desta hora tardia para te escrever. Espero o teu chamado. Repenso a história do carro, trocar o meu, como sugeriste, mas que não seja me desfazer do fusca. E.M.B. Mattos – Porto Alegre – 1999 Biscoito-Pannina-Junior-El-Trigal

texto perdido, achado

1.

O telefone silenciou. A rede de informações também. Extravasou aflição nas lágrimas não derramadas… Fechou os olhos para dormir. Do outro lado a cena continua: ninguém pode saber o que está na intenção das pessoas.

A mulher, mãe dos filhos dele, pega lotação todos os dias. Trabalha para uma corretora de imóveis. Na idade dela, sem nunca ter trabalhado, sem qualificação específica, pode aprender a vender. Ou alugar moradia, ou vender pastel e refrigerante, alugar vestido, enfim, o comércio. Ela entrou no ramo imobiliário aberto para toda e qualquer faixa etária; abraça uma gama diferenciada de pessoas. Diferenciadas não pela qualificação específica, mas pela necessidade de saber lidar com as pessoas: polidez. Vender o produto, mas negociar, nem sempre. Fisgado o peixe o negócio se faz sozinho. O empregado encarregado, ponte necessária ao fluxo de procura. Apesar da pobreza e da situação de calamidade do país, parcela razoável de pessoas habita ou casas razoáveis ainda com jardim, ou chamados, bons apartamentos que desfilam neste comércio imobiliário necessário. Corretoras acolhem pessoas de todas as idades, comissão, e não perdem dinheiro. É nesta situação de isto ou aquilo acontecer que ela encontrou trabalho, – se consideramos emprego tal situação.

Igualdade da mulher, direitos humanos. Caráter e convivência de trinta anos num casamento não modifica senso prático generosidade nem dinheiro. Afinal, negócios são negócios: relação direta de pai para filho. Depois do dinheiro, tudo o mais é o resto.

Nessa situação caótica meio ao litígio de uma partilha dita importante os dias seguem formando anos: assim é a lei tartaruga. Embalada na própria solidão, dividindo o pouco. Ironia. As pessoas pensam que sabem do passado do outro…, equívoco. Tudo que for referencial ou já conhecido tem a marca de apenas uma das facetas. O visceral que se deteriora na lembrança não é isso nem aquilo, muito menos aquilo outro. Como saber a história toda a alma por inteiro, ou o sentimento?

As pessoas que a viam entrar na lotação atrasada ou cumprindo o horário, sair da lotação viam/enxergavam apenas os sapatos com saltos bem altos, a saia justa, o rosto maquiado já de manhã bem cedo. Cabelos puxados e arrumados. Olhar de quem procura. O que mais? Vazio.

Agora aquela história estranha do desaparecimento da filha. Não chorou. Por que o faria? Apenas engasgou e ficou seca, quieta. Ninguém bateu na porta. O telefone não tocou. Pensou na filha afastada, agora refém. Com quem conversaria? Bateu na porta da vizinha porque sabia estar vendo o último programa da Bandeirantes. Ritual. Pediu uma cerveja, comentou da insônia. As duas ficaram ali mesmo segurando as portas no corredor no meio de três palavras. Julieta, a vizinha, aproveitou para devolver o quilo de café da semana passada. Deu boa noite. Sonia pegou a cerveja. Vou fazer pipocas, pensou. Elizabeth M.B. Mattos – 14  outubro 1999 – Porto Alegre

 

preocupado

Dizeres / mencionar o preocupado foi como carregar os dias difíceis comigo. Deve ser assim envelhecer: amar mais, dizer bobagens, esquecer as palavras e se sentir dolorida, cansada e dormir menos. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 – Torres

Iberê

embalo

Tu e tua amorosidade! Muitas, muitas risadas fora do dia marcado. E se houve temporal desavisadas, logo encharcadas…  Depois outra vida, outro tempo, outra hora.  Nos esquivamos de tanto coisa ruim! Embalo, ou deixo chorar. É a danada da vida! Não temos tempo para tanta memória.

teu mar foi sempre muita gente chegando e saindo! e nossos segredos

…, a carta já te mandei. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 – Torres

Quadro PEDRO

Trabalho de Pedro Moog

 

cuidado

…apenas uma palavra!

Cuidado, cuidado! Junto com o tempo, o pouquinho de sensatez também vira. O avesso da revolta. Algo no ar, antes da palavra… De certo modo engraçado, lúgubre de certo modo. Palavras que faziam bravamente sentido, estão com o forro de fora.

Alguém – também pode ser um coletivo – tem uma vontade que ninguém considerou. Temor alimenta o medo. Como gritam!  Acessos de familiaridade.  Nenhuma palavra serve – desloca, impele. Por favor! Não grita! Para frente, estamos indo para frente, maio anuncia o sonho. Seja sensata! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019- Torres

vitela em vinha d’alhos

[…] comidas deliciosas saem do coração. Fazer amor, fazer comida, fazer saudade, cozinhar, e se fartar. Chuva e passeio com respingo. Guisado, milho verde e arroz. Alface e tomate. Azeite e manteiga. Alegria certa no perfume das panelas. Um tinto. Cebola e alho.

Por que sou feliz? Pão estalando, fresco. E fome na medida! (sorrindo), pois é, gosto do pequeno gosto. Modesto, e bom perfume, e a danada da fome! Na medida desta manhã. Eu te recomendei, lembras?, uma panela pequena e também a caçarola, outra de ferro. A qualidade do prazer. Estou no meio das tuas panelas. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 – Torres

Por mais que ela cozinhasse cabeça de vitela em vinha-d’alhos, buchos de porco com cogumelos, coelho apimentado em vinho tinto, por mais que o animasse, por mais elevados que fossem os ideais que propunha à ele e à humanidade, […]”(p.45) Günter Grass, O Linguado

ausência como presença

Domingo engasgado. Cinzento. E já  onze horas. Acordei tarde. Ou foi cedo que dormi? Tanta chuva tanto cinzento! Não sei do relógio, nem do tempo. Bom este silêncio. Sinto ausência como presença.  Passeio curto no respingo desta preguiça. Milagroso excesso:  a fala humana,  a palavra desdobrada e aberta. Deste jeito eu chego, e voltas para mim. Assim, nunca te esqueço. Eu te abraço neste domingo. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 – Torres

sedução

Saudade da minha saudade de ti. De te amar aberto sem pejo, apenas desejo. Seduzida pela sedução: tua, minha, a nossa. Rochedo teu silêncio. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2019 no domingo cinzento depois do grande temporal.

pejo
/ê/
substantivo masculino
  1. 1.
    ANTIGO
    estorvo, impedimento, obstáculo.
  2. 2.
    sentimento de vergonha; pudor.