Afinal, a história é mesmo um grande monólogo. Não sou escritora. Converso escrevendo. E como vivi muitos anos sozinha, nem sei mais dialogar, vou logo preenchendo o silêncio, ponderando, perguntando, e eu mesma, respondendo: monólogo. Ao telefone? Faço a mesma coisa. Movida por uma ansiedade galopante, ardida, falo rápido, muito, e o interlocutor fica a caçar o assunto. Exausto, desiste. Ou grita: Escuta! Quero falar. Deixa-me contar?
Difícil ambientar onde a história acontece, como é o lugar, em qual cidade. Importa? Explicar o vaso das rosas artificiais, as grandes aberturas para gigantescas áreas externas, vazias. Sem verdes, uma ordem definida pelos anos, mais precisamente, uma mudança definitiva para este apartamento. Nenhum detalhe, não fosse aquele anjo de cera, e as fotos, muitas fotos que se espalham pelo corredor. E é bonito isso, como se a vida brotasse naquelas pessoas a sorrirem, a manterem suas melhores roupas, e as crianças todos, engomadas. Gosto, particularmente, de corredores. Em algumas casas são colocadas estantes, estantes inteiras de livros, com uma porta de armário para lençóis e cobertores. Gosto! Também conheci um corredor que se transformou em galeria, pequenos quadros, e depois um enorme! Uma pintura linda de Fukushima! Tiveram o cuidado de iluminar adequadamente. As obras de arte precisam de luz indireta para não danificar os quadros, e um ambiente climatizado adequadamente. Sem humildade. A parede não deve ter nenhum cano que leve água para banheiros ou cozinha. Eu mesma imaginei um estranho e lindo corredor de espelhos. Podiam ser de todos os tamanhos, com molduras, sem molduras. Como um túnel! Alguns podiam ser distorcidos!
Aqueles olhos espertos, redondos, uma boca expressiva, o cabelo puxado, sempre arrumado, unhas feitas, impecável ao acordar com a leve maquiagem, e a gentileza diária. Encantadora. Enquanto bebe o chá vermelho, aromatizado, fica folheando as revistas, passa os olhos, minuciosamente, pelo pequeno jornal, algum assunto bombástico?! A Guerra na Crimeia, a morte de Alain Resnais, o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes joga lixo no chão! O lançamento da coleção Inverno, falta uma semana para terminar o Verão. Ah! Estes escandalosos filmes do Oscar. Ela levanta inquieta para se livrar daquilo tudo. As revistas ficam abertas. O jornal, metodicamente, vai para o monte. Alguns hábitos, fazeres, cruelmente colados à pele. Levantar e esticar os lençóis. Bocejar, espreguiçar para que o dia se levante antes dela, nunca ao contrário. Reclamar deste ou daquele ruído, separar a roupa que deve ser passada. Outra vez senta na cadeira de orelhas. Pega um livro para ler, um dos que já leu porque a história é doce, romântica, e todo o amor entre eles justifica a vida presa no casarão, rodeada pelos filhos. Naquela época o jardim tinha / tem / teria flores, o gramado, perfeito. A piscina limpa. Aos finais de semana, longos passeios. Boa comida. Mas também comedido, num ritual inglês com aperitivos, drinque, conversa frívola sobre o fracasso de um romance local, uma traição, a voz irônica do filho para com o pai. Curiosidade sobre liberdades impróprias da moça que mora na outra esquina. Os costumes constrangedores de uma modernidade, que seria então decadente. Hermínia concordava, alongava a explicação. E ambos ficavam satisfeitos com tanta compreensão mútua.
Lucia não pretende ver nenhum dos filmes. Questão fechada. Não vai ao cinema. Cinema, fuga gostosa… Vai assistir televisão, passiva. Escolhe-se ao programa adequado ao espírito. É assim como escrever. VUPT! Passou o tempo.
Já nem lembro mais porque resolvi escrever, e agora comi demais, sem apetite. O que pretendia escrever diz respeito a morte. Ninguém quer morrer, ninguém espera morrer, mesmo quando diz: Eu sei que a hora chegou… É a doença a doer, a determinar. Então, todos os seres sadios repetem: ele escolheu, ele não se cuidou, ele quis assim. No fundo não queremos nada. Não queremos porque sequer sabemos o que devemos / deveríamos, de fato, querer. Atentos ao fluxo ziguezagueamos tentando, como se escolher importasse. Na verdade, é aleatório. Viver é um pouco assim, ao acaso. Estamos na ilha, então, respiramos, uma ilha. Escolhas? Posso pegar o barco, seguir a ponte, subir na árvore, mas não vejo árvores, não há ponte, não tenho dinheiro para embarcar neste barco. Então eu fico. Aleatoriamente eu me sento na areia pra brincar… Os famosos castelos de areia. Aleatórios. Não temos como escolher. Ninguém pode decidir. Tem o tal do suicídio, estamos naquela química ruim, e nos matamos… É a química, ou a escolha? Sei lá! Estou aqui arrependida por ter enveredado por este caminho. Na verdade, sinto um aperto triste no coração, cheio de culpa porque ele vai morrer agora, amanhã ou depois, e eu não queria nada disso. Queria morrer por ele? Não. Eu quero viver. Faço uma força danada pra viver. Ou nem faço?! Amamos errado, escolhemos errado. Desenvolvemos defesas e mágoas, mas escolhemos, indubitavelmente, os a ser compartilhados, os mesmos. Eu não queria te ver doente. Seria a hora de dizer, eu te amei sim, amei do jeito esquivo, torto que foi o meu possível. Eras tão lindo! Gentil! Tão poderoso, tão possível! E eu estava apunhalada na minha vaidade pequena. Sequer tinha certeza da beleza, da inteligência, tudo estava ali pra ser provado, para tu me aprovares, e me ajudar a seguir. Eras um deus pagão, livre ao acaso, destinado a seguir as ondas, sem ideia de que o mundo nos pede força, coragem, e para renegar, dizer sim, mas tantos não! Manter as rédeas, abrir os olhos. Nos abraçamos cegamente. Fizemos amor sem certeza, encantados com a plenitude da juventude, ou tu me amavas? Enganosa juventude! Na verdade, esperavas, achavas que tudo estava mais ou menos estabelecido, como fora com teus pais. Impor o ritmo. Um estou aqui, o que precisas? E não foi só o pai, mas o teu irmão mais velho, o grande senhor, que ousou assumir uma mulher linda, livre e poderosa, lá de outro lado do mundo…, ele a submeteu, ele absorveu, tu farias o mesmo. O norte deste país. Graciosa, submissa e entregue, sua mulher. Então, outra vez estava definido o homem, a mulher. Comigo deveria ser a mesma coisa. E eu fui toda/ tão rebelde e diferente. Isso te irritou, minha rebeldia ardida. Bela como eram as escolhidas mulheres referência, mas meio de lado, meio arteira, arbitrária. Disfarçada, escondida, ardilosa, inteligente, ou acobertada. Nada comigo era certo ou absoluto. Cheia de truques que desconhecias, cheia de manias e nostalgias incompreendidas. Tu não querias entender, querias dobrar a minha vontade. Dissimulada como a Capitu, todas as mulheres são/seriam definidas como a Capitu de Machado de Assis: concluirias que focos, desejos, volteios diferem, mas todas enganam. E os homens se enganam, e enganam também… Terreno perigoso. Então, na hora de dizer estou indo, vou mesmo morrer, parece que tudo fica nublado e o desejo de viver ilumina a vontade. Os filhos, os meus meninos são o resultado positivo. Estão aqui ao meu lado, apenas isso importa, tu te contas esta história. Que homem entregue / inocente, perdido te descreves. Erraste, mas não sabes onde está o equívoco / não aceitaste. O erro essencial. Compreendeste tudo errado. Na tua soberba não perguntaste onde erravas. Não quiseste as respostas. E afirmaste: “Pensava estar entendendo, mas não consegui assimilar, muito menos saber o porquê. Segui a linha mestra, dos meus pais, do meu irmão mais velho, da minha irmã que queria um marido que lhe desse filhos. Fiz tudo certo. Afinal, o que fiz de errado? Apenas aquilo que apreendi em português, em inglês, pouco proveito teve o meu francês… Tentei descobrir alguma coisa, mas já o dinheiro me cercava com tantas facilidades. É tão mais fácil escolher pelo custo/valor.”
Pelo que nos chega às mãos fácil, eu diria. Como sorrir pra beleza. O perfeito do belo parece uma certeza. O que posso te responder? Não há perfeição. Somos um amontoado de culpas. Eu não queria estar aqui, agora. Estou. Eu queria ser eu até o fim. Decidir por mim, mas não consigo sequer falar… Tentei entender, saber das coisas, mas elas se agigantaram tão estranhas, tão estrangeiras que fui desistindo no caminho. Por isso virei as costas. Eu não fiz porque alguém me pediu pra fazer, não me ensinaram a ver. Não houve a interferência que tu imaginaste… Andei no escuro. Estou no escuro. Anos e anos de terapia para chegar a compreende o porquê fazemos daquele jeito, não como deveríamos ter feito. E tem receita? Queria dizer aos meus filhos, os três, os quatro? Amei de um jeito egoísta que me parecia/pareceu o natural. Desculpem, mas amei. Só segui o fluxo interior. Um avô soberano com segredos internos, glorificados, mas não se debruçou no real quanto aos filhos. Uns tem sorte, passam no concurso público certo, ganham um monte de dinheiro, e com dinheiro ficam reconhecidos. Brilham porque escrevem a coisa certa, na hora certa. Felizes! Porque descobriram o caminho do eu faço, eu posso, eu tenho o tapete certo. Mas existe o inverso. Érico Veríssimo, Vianna Moog, sem esquecer do baiano de Gabriela Cravo e Canela, nas letras esquecem dos livros de Memórias de Pedro Nava. Mas lá está Jorge Amado televisivo, filmado, globalizado. Europeus, americanos não conheciam aquele lado safado de ser brasileiro… Gostaram. Pois é. Esta simulação, deste fazer sem estar fazendo. Acho que nunca consegui entender isso, tu te repetes. “Eu fiz, fiz torto, mas fiz de uma forma absolutamente correta, em linha reta, sem esquinas, sem lugares escondidinhos. Pensei que seria assim, liso, transparente. Escolhi justamente uma mulher esquiva, machucada, dissimulada, triste, e tão linda!” O teu julgamento. Esta coisa esquisita da linguagem, de dizer as coisas. A arte obcecada pela leveza lisa do belo que não ajusta estas coisas hediondas, falsas sendo, afinal, completamente verdadeiras. Para onde estou indo? Eu compreendo. Queres saber se foste amado, reconhecido em alguma volta pequena… “Pelos irmãos reconhecido, pelos filhos reconhecido, pelas mulheres que amei, e, desconfortavelmente, me senti renegado. Concluíste: “Nunca fui rei”. Tapetes persas, cristais, pratas, supérfluos, mas transformam casas em palácios. Respeitaste a cortesia da verdade verdadeira. Querias ter sido minimamente compreendido. Afinal, tu me dizes: “Escolhi ser inteiro no que sou, não fiz concessões. O erro foi este, não houve uma exceção, nem concessão. Caminhei com absoluta certeza. Digamos religiosa certeza. A certeza dos loucos? Dos santos? Dos possuídos? Contudo, estive consciente. Existe o correto, o justo. Fiz como deveria ser, como apreendi que deveria ser. Depois, depois, depois que as calças curtas foram substituídas pelas calças de homem; já estava devidamente tatuado por certezas absolutas. Minha inteligência enterrada em caixa forte. Foi assim que apreendi. Acho que por isso, hoje, as pessoas têm/estão com preocupações diferentes. No meu tempo, criança era criança, e pronto. Não era um ser completo. Ditadura, autoridade, tinha nome, homem macho, liberdade e dinheiro. Como tudo pode mudar tão depressa! Nem sei como tratar as mulheres, acalentá-las? Obedecer? Não, elas deveriam ter me olhado com mais atenção. Um homem bonito. Inteligente. E eu choro não poder te responder ou acalentar. Imagino o quanto está doendo…, eu não queria que sentisses esta dor, eu penso. Beber um uísque, fumar um cigarro, e ter estrelas. Assim serias feliz. Isso eu quero. Eu não tenho mais tempo de me explica. Que vontade bem grande de chorar. Quero meus filhos. Ar! Quero respirar! Quero que me deem a mão, saber que estão todos aqui comigo. Os filhos. Talvez isso seja viver, ter filhos.
Assim eu te imagino a pensar. 2014 – Porto Alegre
Releio e volto ao tempo para situar as questões explícitas. A ser refeito o texto. Em forma de diálogo, ou num monólogo menos confuso. Sou eu, és tu. Elizabeth M.B. Mattos – Torres 2020 e o passado.