anêmonas / “Esboço de um Passado”

Penso memória / lembro / imagino anêmonas: coloridas, frágeis e sem perfume: amarelas roxas vermelhas azuis. Na pequena leiteira inglesa, ou naquele bojudo vaso miniatura: efêmera, preciosa reminiscência.

É de flores vermelhas e roxas num fundo preto – o vestido de minha mãe: ela estava sentada num trem ou num ônibus, e eu estava no seu colo. Eu via, portanto, as flores do vestido que ela estava usando bem de perto; e ainda vejo o roxo, o vermelho e o azul, creio, contra  o fundo preto; acho que eram anêmonas. Talvez estivéssemos indo para St. Ives; mais provavelmente – pois, pela luz, devia ser noite -,estávamos voltando para Londres. Mas é mais conveniente, sob o ponto de vista artístico, supor que estávamos indo para ST. Ives, pois isso conduzirá minha outra recordação, e na verdade é a mais importante de todas as minhas recordações.” (p.76)

Já tínhamos nos mudado para a rua André Poente. Tânia e Renato já estavam vivendo em Paris. E a mãe tinha quebrado o braço. Suzana se ocupava da limpeza, e eu das refeições, o pai se orgulhava: tudo funcionava.

Uma das esquisitices deste envelhecer: tropeçar em autoras / autores (os preferidos, é claro) que trazem de volta lembranças espalhadas no prazer de ler/escrever/pensar e respirar. A leitura com mágica, e a escrita no picadeiro iluminado. Gosto.

Se a vida possui uma base na qual se apoia, se é uma vasilha que se enche, se enche e se enche – então minha vasilha sem dúvida alguma está  boiando sobre esta recordação. A de estar deitada, semiacordada, semiadormecida, na cama de nosso quarto em St Ives.” (p.76) Virgínia Woolf Momentos de Vida – Um mergulho no passado e na emoção

Se a vida tem memória, posso voltar até a casa da rua Vitor Hugo 229, em Petrópolis. Magda, Ana Maria e Nádia estarão comigo. Correr. Subir nos muros, ou arrastar as bonecas, depois largar tudo, e, pegar as bicicletas, mesmo sem freios e pedalar pelas calçadas, vamos para o clube Petrópolis Tênis Club explorar as piscinas. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2020 – Torres

P.S. Bonecas se misturam nas correrias. Gostava delas tanto quanto de dançar.

Morosidade

Morosidade inquietante. Morosidade interna que invade o corpo / derruba o ânimo, e a rotina. Perigo encaixotado. E a loucura força, insiste, depois derruba. Não consigo segurar a intenção, nem a voz, nem a dor do corpo, e a certeza escorrega pegajosa.

Nem a leitura, nem a luz, muito menos o silêncio, acalma. Um pouco o desenho porque nunca quero acertar, o lápis vai sozinho… Então, o desenho me afronta, e me acalma.

Não quero escutar as vozes, não quero ver a luz, nem cantar/falar, muito menos murmurar, mas eu ouço e sussurro. Elizabeth M.B. Mattos – 2020 – março – Torres.

o segredo

Um segredo muito simples: o amor. Tudo o que nos fascina no mundo inanimado, os bosques, as planícies, os rios, as montanhas, os mares, os vales, as estepes, e mais e mais, as cidades, os edifícios, as pedras, ainda mais, o céu, o pôr-do-sol, as tempestades, e muito mais, a neve, a noite, as estrelas, o  vento, todas essas coisas, em si vazias e indiferentes, enchem -se de significado humano porque, sem que o suspeitemos, contêm um pressentimento de amor.” (p.127)

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Compadeçam – se: é exatamente isso. Sem que saibam, o chamado subsiste mesmo naquelas carcaças ainda cheias de vida; elas tem sessenta, setenta, oitenta anos, são senhoras honestas e respeitáveis, morreriam de vergonha se pudessem imaginar o que as leva de cá para lá no mundo. No entanto, se nas viagens não houvesse aquele vislumbre romanesco e inverosímel, jamais se animariam sair de casa. Perambular de fronteira em fronteira, de hotel em hotel, tornar – se ia um verdadeiro suplício.“(p.129)

Dino Buzatti Um amor

Uma manta

Uma manta

Para o meu canto fiz manta

Bordada com fantasias

De antigas mitologias

Do calcanhar à garganta;

Exibiram sua beleza

Como se a tivesse feito.

Cancão, aceita o ocorrido:

Existe maior proeza

No andar despido. 

W.B. Yeats POEMAS tradução de Paulo Vizioli

A coat

I made my song a coat

Covered with embroideries

Out of old mythologies

From heel to throat;

But the fools caught it,

Wore it in the world’s eyes

As though they’ d wrougt it.

Song, let them take it,

For theres’s more entreprise

In walking naked

Do bordado

Enfeitei. Justifiquei o meu tempo: “bordado de fantasias”. Dancei. Pulei enquanto chorei, ninguém percebeu. Nem tristeza, nem dor. Tirei minha roupa  devagar para te abraçar, e, meu corpo estremeceu no andar despido de te amar. (Para JMCL)

Da vaidade

Tua vaidade em cachos coloridos, teus pés mimosos. Mãos inquietas. Caminho fechado. Proibido desta/nesta febre fresta de teu sorriso, Rose. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2020- Torres

muro e casa 1

Assunto: saudade do Rio de Janeiro

Enviada em: Domingo, Junho (dia 1 -2014 10:57)
Assunto: SAUDADE

Estou aqui tentando acordar dos dias que passamos juntas, dos olhos espertos da Valentina, dos passeios curtos, e engraçados. Do vento. E já sinto bem o frio. Triste por não ter feito as pipocas. Os biscoitos, comeste todos. E se abro uma coca – cola lembro de quando eras pequena: não fui vigilante. Vício, é vício. Difícil abrir novo hábito, novo paladar. Contigo fui permissiva. E com todos, comigo mesma também, adoro refrigerantes. Penso naquela tal liberdade sem preço como diz a nossa Luiza. Dormi muito, demais. Tempo demais na cama. Céus! O ânimo desmantelado. Coisas por fazer… Bom que a chuva terminou. E a lagoa fica cintilante iluminada, embora o sol não tenha chegado de todo/inteiro. Faz frio. Bom também que vocês estão no quentinho. Dizem que será um gélido inverno este de 2014. Não quero reconstruir nada, mas ainda desejo sonhar, fazer… Ou melhor, quero reconstruir sim, um monte de coisas. Construir a família, nós cinco. Não, somos nove, não é? Eu é que sou ímpar. Quero todos mais perto uns dos outros. Agora meu corpo reclama. Os joelhos reclamam. Então não limpei, nem tirei o pó, tampouco encerei o assoalho. Esqueci a frenética limpeza da casa. As roupas seguem nas cadeiras, os livros desordenados. A mala aberta. Os lençóis por passar. Se eu tivesse, se eu pudesse mandaria passar, estalar num ferro de prensa, as roupas de cama. E pensei nas camisas do Guilherme. No excesso, na canseira do corpo que se gruda feito goma dificultando tudo. Encontrar a eficiência nesta divisão de espaço. Abrir a janela para dividir, dividir, e dividir. Apreendi tanto da filha mãe que te transformaste: atenta, cuidadosa, cansada também. Neste tempo de mãe nos damos conta que o dobro já é muito. Imaginas o triplo, o quíntuplo? E as pequenas peças perdidas se transformam, como gosto de dizer, em borboletas… É para sorrir que penso nas borboletas. Outras prioridades. Depois voltamos, e reencontramos tudo que era só nosso outra vez. O ciclo. Ás vezes esqueço do jeito que sou, então invento uma composição familiar. “ Eu nem gosto de livros! Porque tenho estantes? ” Este colo, estes beijos pequenos que chegam com os filhos aquecem tanto! Na tua casa deves ter dormido melhor. Estou aqui empurrando o palavreado, mas estou mesmo é debruçada na saudade. Saudade de ti, da minha neta, do silêncio de estar apenas junto. E nem te cobri de mimos como pretendia, passou depressa, muito depressa. O frio te assustou. Em setembro venta, mas outubro começa a esquentar. Antes quero ver o Pedro, será que consigo? As dobras, sobras estarão refeitas, refeitas? Um meio sorriso de novos rumos. Braços abertos. Amo tanto vocês! Queria mesmo ter aquela casa que imaginas: portas, janelas, quartos, banheiros, cozinha grande, mesa grande, bastante sol, o cheiro do teu bolo, as pipocas, os filmes, os brinquedos da Valentina. O entra e sai dos meninos, talvez com namoradas, amigas de saia curta. Bicicletas para passearmos em bando. Por que não? Todos juntos. E, quem sabe? Pedro com um filho-menino pra beijar, acalentar também. Fantasia? Ana Maria assando aquela picanha no forno. Podes fazer a tua farofa de pão chinês, como é mesmo o nome? Eu vou me ocupar da salada, e das frutas. Hoje no meu café da manhã comi as salsichas Endler! Bem que queria ter feito dois bifes de filé na manteiga, e sentir melhor o gosto do pão e do café. Sou gulosa também. Depois descasquei a manga amarela olhando para o caqui de chocolate que ficou na bandeja. Tudo é possível nesta casa grande. Gente, risadas, gramado, e a vontade quente de estarmos todos juntos, esparramados no afeto. Pés descalços, saias largas, e camisetas brancas, frescas. Calor, fará calor e teremos sol, e sombra daqueles cinamomos que eu gosto, desajeitados, perfumados.Um beijo. Amo. Amo. Amo.

“ As sombras da alma. As histórias que os outros contam sobre nós e as histórias que nós mesmos contamos – quais delas se aproximam mais da verdade? É tão certo assim que sejam as próprias histórias? Somos autoridades para nós mesmos? Mas nõ é esta a questão que me preocupa. A verdadeira questão é: existe, nessas histórias, alguma diferença entre certo e errado? Nas histórias sobre coisas exteriores, sim. Mas quando tentamos compreender alguém em seu interior? Esta viagem algum dia chega a um fim? Será a alma um lugar de fatos? Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias? ” (p.153)
“…) desejo patético, de sonho – de voltar outra vez àquele ponto de minha vida e tomar um rumo bem diferente do que aquele que fez de mim quem sou agora…Sentar de novo no musgo quente e ter o boné nas mãos: é o desejo insensato de voltar para o tempo que deixei para trás, levando a mim mesmo – marcado pela vivência – nesta viagem. ”(p.154)
Trem noturno para Lisboa, Pascal Mercier

Elizabeth M.B. Mattos (das correspondências)

2014 – obrigada por teres guardado

06/03/2014 18:11, Torres.
Joana: tenho pensado em ti, na Joana lá de dentro, na guerreira. Talvez estejas doente, resfriada ou fraca. Este período é dureza sempre. Enfim! Não sou eu quem deva dizer, ou pensar, ou descobrir. És tu mesma. Nós mães, pensamos nos filhos. Os netos são uma doçura a ser conquistada… Quando fiquei grávida pela primeira vez entrei em pânico, algo indizível porque queria muito/tanto ter filhos. Na segunda vez também me assustei. Na terceira vez ainda me surpreendeu a coragem de mais uma gravidez. E minha mãe se assustava mais ainda porque eles vinham, eles chegavam aqueles filhos. E meu casamento não era sólido, talvez por minha inoperância, minha excessiva juventude. No entanto os filhos foram a minha certeza à medida que cresciam, eu me reconhecia neles. Eu me sentia salva naquele mundo tão complicado. Afinal eu estava naquele mundo, e ia mesmo enfrentar tudo. Uma das coisas esquisitas de ter filhos é a sensação de invasão. Não estaremos nunca mais sós, nunca mais. E o nosso lugar é o lugar deles, o espaço é deles. O marido limitamos, acomodamos, mas os filhos sempre ocupam a casa inteira. Conhecem os segredos todos. Abrem todas as gavetas. E todos os armários. Através desta luz começamos, finalmente, a ver/ entender/ o mundo não é nosso, mas deles. Não é preciso explicar. O susto passa. A descoberta chega, e o sentido fica claro: estamos na vida, mãos cheias. Amo-te mais, mas também o meu pacotinho, a minha pequena Luiza! Oxalá pudesse estar mais perto! (Elizabeth M.B. Mattos)

não sou escritor

Afinal, a história é mesmo um grande monólogo. Não sou escritora. Converso escrevendo. E como vivi muitos anos sozinha, nem sei mais dialogar, vou logo preenchendo o silêncio, ponderando, perguntando, e eu mesma, respondendo: monólogo. Ao telefone? Faço a mesma coisa. Movida por uma ansiedade galopante, ardida, falo rápido, muito, e o interlocutor fica a caçar o assunto. Exausto, desiste. Ou grita: Escuta! Quero falarDeixa-me contar?
Difícil ambientar onde a história acontece, como é o lugar, em qual cidade. Importa? Explicar o vaso das rosas artificiais, as grandes aberturas para gigantescas áreas externas, vazias. Sem verdes, uma ordem definida pelos anos, mais precisamente, uma mudança definitiva para este apartamento. Nenhum detalhe, não fosse aquele anjo de cera, e as fotos, muitas fotos que se espalham pelo corredor. E é bonito isso, como se a vida brotasse naquelas pessoas a sorrirem, a manterem suas melhores roupas, e as crianças todos, engomadas. Gosto, particularmente, de corredores. Em algumas casas são colocadas estantes, estantes inteiras de livros, com uma porta de armário para lençóis e cobertores. Gosto! Também conheci um corredor que se transformou em galeria, pequenos quadros, e depois um enorme! Uma pintura linda de Fukushima! Tiveram o cuidado de iluminar adequadamente. As obras de arte precisam de luz indireta para não danificar os quadros, e um ambiente climatizado adequadamente. Sem humildade. A parede não deve ter nenhum cano que leve água para banheiros ou cozinha. Eu mesma imaginei um estranho e lindo corredor de espelhos. Podiam ser de todos os tamanhos, com molduras, sem molduras. Como um túnel! Alguns podiam ser distorcidos!
Aqueles olhos espertos, redondos, uma boca expressiva, o cabelo puxado, sempre arrumado, unhas feitas, impecável ao acordar com a leve maquiagem, e a gentileza diária. Encantadora. Enquanto bebe o chá vermelho, aromatizado, fica folheando as revistas, passa os olhos, minuciosamente, pelo pequeno jornal, algum assunto bombástico?! A Guerra na Crimeia, a morte de Alain Resnais, o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes joga lixo no chão! O lançamento da coleção Inverno, falta uma semana para terminar o Verão. Ah! Estes escandalosos filmes do Oscar. Ela levanta inquieta para se livrar daquilo tudo. As revistas ficam abertas. O jornal, metodicamente, vai para o monte. Alguns hábitos, fazeres, cruelmente colados à pele. Levantar e esticar os lençóis. Bocejar, espreguiçar para que o dia se levante antes dela, nunca ao contrário. Reclamar deste ou daquele ruído, separar a roupa que deve ser passada. Outra vez senta na cadeira de orelhas. Pega um livro para ler, um dos que já leu porque a história é doce, romântica, e todo o amor entre eles justifica a vida presa no casarão, rodeada pelos filhos. Naquela época o jardim tinha / tem / teria flores, o gramado, perfeito. A piscina  limpa. Aos finais de semana, longos passeios. Boa comida. Mas também comedido, num ritual inglês com aperitivos, drinque, conversa frívola sobre o fracasso de um romance local, uma traição, a voz irônica do filho para com o pai. Curiosidade sobre liberdades impróprias da moça que mora na outra esquina. Os costumes constrangedores de uma modernidade, que seria então decadente. Hermínia concordava, alongava a explicação. E ambos ficavam satisfeitos com tanta compreensão mútua.

Lucia não pretende ver nenhum dos filmes. Questão fechada. Não vai ao cinema. Cinema, fuga gostosa… Vai assistir televisão, passiva. Escolhe-se ao programa adequado ao espírito. É assim como escrever. VUPT! Passou o tempo.

Já nem lembro mais porque resolvi escrever, e agora comi demais, sem apetite. O que pretendia escrever diz respeito a morte. Ninguém quer morrer, ninguém espera morrer, mesmo quando diz: Eu sei que a hora chegou… É a doença a doer, a determinar. Então, todos os seres sadios repetem: ele escolheu, ele não se cuidou, ele quis assim. No fundo não queremos nada. Não queremos porque sequer sabemos o que devemos / deveríamos, de fato, querer. Atentos ao fluxo ziguezagueamos tentando, como se escolher importasse. Na verdade, é aleatório. Viver é um pouco assim, ao acaso. Estamos na ilha, então, respiramos, uma ilha. Escolhas? Posso pegar o barco, seguir a ponte, subir na árvore, mas não vejo árvores, não há ponte, não tenho dinheiro para embarcar neste barco. Então eu fico. Aleatoriamente eu me sento na areia pra brincar… Os famosos castelos de areia. Aleatórios. Não temos como escolher. Ninguém pode decidir. Tem o tal do suicídio, estamos naquela química ruim, e nos matamos… É a química, ou a escolha? Sei lá! Estou aqui arrependida por ter enveredado por este caminho. Na verdade, sinto um aperto triste no coração, cheio de culpa porque ele vai morrer agora, amanhã ou depois, e eu não queria nada disso. Queria morrer por ele? Não. Eu quero viver. Faço uma força danada pra viver. Ou nem faço?! Amamos errado, escolhemos errado. Desenvolvemos defesas e mágoas, mas escolhemos, indubitavelmente, os a ser compartilhados, os mesmos. Eu não queria te ver doente. Seria a hora de dizer, eu te amei sim, amei do jeito esquivo, torto que foi o meu possível. Eras tão lindo! Gentil! Tão poderoso, tão possível! E eu estava apunhalada na minha vaidade pequena. Sequer tinha certeza da beleza, da inteligência, tudo estava ali pra ser provado, para tu me aprovares, e me ajudar a seguir. Eras um deus pagão, livre ao acaso, destinado a seguir as ondas, sem ideia de que o mundo nos pede força, coragem, e para renegar, dizer sim, mas tantos não! Manter as rédeas, abrir os olhos. Nos abraçamos cegamente. Fizemos amor sem certeza, encantados  com a plenitude da juventude, ou tu me amavas? Enganosa juventude! Na verdade, esperavas, achavas que tudo estava mais ou menos estabelecido, como fora com teus pais. Impor o ritmo. Um estou aqui, o que precisas? E não foi só o pai, mas o teu irmão mais velho, o grande senhor, que ousou assumir uma mulher linda, livre e poderosa, lá de outro lado do mundo…, ele a submeteu, ele absorveu, tu farias o mesmo. O norte deste país. Graciosa, submissa e entregue, sua mulher. Então, outra vez estava definido o homem, a mulher.  Comigo deveria ser a mesma coisa. E eu fui toda/ tão rebelde e diferente. Isso te irritou, minha rebeldia ardida. Bela como eram as escolhidas  mulheres referência, mas meio de lado, meio arteira, arbitrária. Disfarçada, escondida, ardilosa, inteligente, ou acobertada. Nada comigo era certo ou absoluto. Cheia de truques que desconhecias, cheia de manias e nostalgias incompreendidas. Tu não querias entender, querias dobrar a minha vontade. Dissimulada como a Capitu, todas as mulheres são/seriam definidas como a Capitu de Machado de Assis:  concluirias que focos, desejos, volteios diferem, mas todas enganam. E os homens se enganam, e enganam também… Terreno perigoso. Então, na hora de dizer estou indo, vou mesmo morrer, parece que tudo fica nublado e o desejo de viver ilumina a vontade. Os filhos, os meus meninos são o resultado positivo. Estão aqui ao meu lado, apenas isso importa, tu te contas esta história. Que homem entregue / inocente, perdido te descreves. Erraste, mas não sabes onde está o equívoco / não aceitaste. O erro essencial. Compreendeste tudo errado. Na tua soberba não perguntaste onde erravas. Não quiseste as respostas. E afirmaste:  “Pensava estar entendendo, mas não consegui assimilar, muito menos saber o porquê. Segui a linha mestra, dos meus pais, do meu irmão mais velho, da minha irmã que queria um marido que lhe desse filhos. Fiz tudo certo. Afinal, o que fiz de errado? Apenas aquilo que apreendi em português, em inglês, pouco proveito teve o meu francês… Tentei descobrir alguma coisa, mas já o dinheiro me cercava com tantas facilidades. É tão mais fácil escolher pelo custo/valor.”
Pelo que nos chega às mãos fácil, eu diria. Como sorrir pra beleza. O perfeito do belo parece uma certeza. O que posso te responder? Não há perfeição. Somos um amontoado de culpas. Eu não queria estar aqui, agora. Estou. Eu queria ser eu até o fim. Decidir por mim, mas não consigo sequer falar… Tentei entender, saber das coisas, mas elas se agigantaram tão estranhas, tão estrangeiras que fui desistindo no caminho. Por isso virei as costas. Eu não fiz porque alguém me pediu pra fazer, não me ensinaram a ver. Não houve a interferência que tu imaginaste… Andei no escuro. Estou no escuro. Anos e anos de terapia para chegar a compreende o porquê fazemos daquele jeito, não como deveríamos ter feito. E tem receita? Queria dizer aos meus filhos, os três, os quatro? Amei de um jeito egoísta que me parecia/pareceu o natural. Desculpem, mas amei. Só segui o fluxo interior. Um avô soberano com segredos internos, glorificados, mas não se debruçou no real quanto aos filhos. Uns tem sorte, passam no concurso público certo, ganham um monte de dinheiro, e com dinheiro ficam reconhecidos. Brilham porque escrevem a coisa certa, na hora certa. Felizes! Porque descobriram o caminho do eu faço, eu posso, eu tenho o tapete certo. Mas existe o inverso. Érico Veríssimo, Vianna Moog, sem esquecer do baiano de Gabriela Cravo e Canela, nas letras esquecem dos livros de Memórias de Pedro Nava. Mas lá está Jorge Amado televisivo, filmado, globalizado. Europeus, americanos não conheciam aquele lado safado de ser brasileiro… Gostaram. Pois é. Esta simulação, deste fazer sem estar fazendo. Acho que nunca consegui entender isso, tu te repetes. “Eu fiz, fiz torto, mas fiz de uma forma absolutamente correta, em linha reta, sem esquinas, sem lugares escondidinhos. Pensei que seria assim, liso, transparente. Escolhi justamente uma mulher esquiva, machucada, dissimulada, triste, e tão linda!” O teu julgamento. Esta coisa esquisita da linguagem, de dizer as coisas. A arte obcecada pela leveza lisa do belo que não ajusta estas coisas hediondas, falsas sendo, afinal, completamente verdadeiras. Para onde estou indo? Eu compreendo. Queres saber se foste amado, reconhecido em alguma volta pequena… “Pelos irmãos reconhecido, pelos filhos reconhecido, pelas mulheres que amei, e, desconfortavelmente, me senti renegado. Concluíste: “Nunca fui rei”. Tapetes persas, cristais, pratas, supérfluos, mas transformam casas em palácios. Respeitaste a cortesia da verdade verdadeira. Querias ter sido minimamente compreendido. Afinal,  tu me dizes: “Escolhi ser inteiro no que sou, não fiz concessões. O erro foi este, não houve uma exceção, nem concessão. Caminhei com absoluta certeza. Digamos religiosa certeza. A certeza dos loucos? Dos santos? Dos possuídos? Contudo, estive consciente. Existe o correto, o justo. Fiz como deveria ser, como apreendi que deveria ser. Depois, depois, depois que as calças curtas foram substituídas pelas calças de homem; já estava devidamente tatuado por certezas absolutas. Minha inteligência enterrada em caixa forte. Foi assim que apreendi. Acho que por isso, hoje, as pessoas têm/estão com preocupações diferentes. No meu tempo, criança era criança, e pronto. Não era um ser completo. Ditadura, autoridade, tinha nome, homem macho, liberdade e dinheiro. Como tudo pode mudar tão depressa! Nem sei como tratar as mulheres, acalentá-las? Obedecer? Não, elas deveriam ter me olhado com mais atenção. Um homem bonito. Inteligente. E eu choro não poder te responder ou acalentar. Imagino o quanto está doendo…, eu não queria que sentisses esta dor, eu penso. Beber um uísque, fumar um cigarro, e ter estrelas. Assim serias feliz. Isso eu quero. Eu não tenho mais tempo de me explica. Que vontade bem grande de chorar. Quero meus filhos. Ar! Quero respirar!  Quero que me deem a mão, saber que estão todos aqui comigo. Os filhos. Talvez isso seja viver, ter filhos.
Assim eu te imagino a pensar.  2014 – Porto Alegre

Releio e volto ao tempo para situar as questões explícitas. A ser refeito o texto. Em forma de diálogo, ou num monólogo menos confuso. Sou eu, és tu. Elizabeth M.B. Mattos – Torres 2020 e o passado.

 

cuidado

Recebi tua carta: obrigada. Desligo vozes da televisão. Fujo dos espinhos. Espinhos agravam. Cautela e cuidado: como são necessários! Tanto preciso de tua atenção! E não estás! Nem teu abraço: sinto falta, mas vou me acostumar acostumando. Obrigada pelas fotos. As coisas dentro de casa precisam ser feitas, então não interrompo. Depois um nada: uma esticada sesta. A limpeza do prazer. Busco flores e luz. Bom que choveu! E a temperatura, perigosamente, agradável. Um bom presente? Não sei. Não te exponhas. Não vás sentir frio. Não exagera em nada. Cuida de ti e do outro, da tua companheira, dos cães, dos verdes, das tuas diversões e da paciência. A sensação de guerra pesa assustadora, como um monstro feio. Chegaremos ao fim. Espero. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2020 – Torres

PS Pensei não escrever. Uma trava interna, uma angústia fechada, um peso de chumbo. Vai passar! Eu sei. Então te manda apressada este bilhete. Que o correio chegue. Te gosto tanto!