O Homem sem Qualidades

“[…]apenas, é mais simples dizer: ela é velha. E essa passagem da sensação de velhice para a de beleza do mundo é mais ou menos a mesma transição que se faz do espírito dos jovens para a moral mais complexa do adulo, que parece uma lição ridícula até que nós mesmos a compartilhamos.

Naturalmente, ao leres esta carta não vais entender o porquê de escrever / dizer e repassar estas coisas todas. É para nos revisitar / ou visitar nossa juventude, naquele verão da Lucila em casa. Para pensar juntos, ou para que saibas mais do que possas imaginar da marca / da força do reencontro. Naquele café da rodoviária, certamente, nos esqueceríamos das horas. E me ocorreria  dizer, ainda uma vez, repetir que estou/sigo apaixonada. Volto ao livro. Ele, o austríaco, Robert Musil  traduzido pela tua amiga (844 páginas) Lya Luft e Carlos Abbensseth escreve:

Enquanto contemplava o refinamento arquitetônico daquela construção sagrada, Ulrich teve uma consciência surpreendentemente viva de que podemos tão bem devorar seres humanos quanto construir ou deixar intactos aqueles monumentos.” A ideia de devorar seres humanos não te parece conhecida? As pessoas caem vorazes e sádicas para arrancar o couro, a lágrima, o gosto de viver com tal sadismo  E chamam de o devido. O justo.!” Nesse momento ele desejou ser um homem sem qualidades. Mas provavelmente em todas as pessoas se passa algo semelhante. No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com seus prazeres; sua visão do mundo, sua esposa, seu caráter, profissão e realizações, mas tem a sensação de que já não poderá mudar lá muita coisa. Até poderiam afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral, dependem de uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude ainda jazia a frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de possibilidades e de vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de repente algo que pode pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como certo dia, de súbito, vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante vinte anos sem a conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente,” […] Alguém inventa um belo novo gesto,exterior ou interior…como se traduzirá isso? Um gesto de vida? Uma forma em que o interior se derrama como gás em um globo de vidro? A expressão de uma im- pressão? Uma técnica do ser? Pode ser um novo bigode ou uma nova ideia. É teatro, mas como todo teatro, faz sentido…e e imediatamente as almas jovens se lançam em cima, como pardais sobre  comida que lhes jogamos. Basta imaginar: quando lá fora o mundo pesa sobre nossa língua, olhos e mãos, a lua esfriada feita de terra, casas, costumes, quadros e livros – e dentro de nós, apenas um nevoeiro em movimento incessante: que felicidade deve ser alguém nos apresentar uma expressão na qual nos reconhecemos.”(95-96)

Falsos inúteis encontros: nomeados desastres. O verdeiro encontro  reconheço nesta descrição longa, mas poética. Então levanto os olhos, e posso rir contigo. Tanta filosofia amarrada! Pedimos uma cerveja, dois pastéis e desistimos de comprar passagem para o próximo ônibus, nos deixamos ficar. Costuramos o tempo de ficar mais um dia, só mais um para entender este quadro de verão que somos nós dois. Elizabeth M.B, Mattos – abril de 2020 Porto Alegre

“[…] que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma!!!(p.11)

Confissão

A verdade e a palavra se cruzam numa trança azul, e a mentira dança exibida. Porque tudo pode ser sigiloso e vaidoso ao mesmo tempo. Há tempo de negar e tempo de afirmar. “É divertido concordar; é divertido discordar; e é sempre interessante saber o que um homem inteligente tem  dizer a respeito de algum escritor, Henry More, por exemplo, ou Richardson, que nunca tivemos ocasião de ler. Mas a única coisa importante num livro é a significação que ele tem para nós;pode ter outras e muito mais profundas para o crítico; mas, assim de segunda mão, pouco nos aproveitam. Não leio um livro por amor do livro, e sim por mim mesmo.” (p.93-94) W. Somerset Maugham Confissões

“As pessoas são difíceis de conhecer. Demanda tempo levá – las a contar o fato peculiar a seu respeito e que possa nos ser útil.” (p.94)

As pessoas nos cercam como se fosse possível agarrar, descobrir, usar e seguir. Não é possível. Explicar a relação pode ser o mais complicado: o neto te seduz, resolve todos os teus problemas, abre as trincheiras para a minha guerra, mostra o alvo, e pronto, desisto de atirar, vou morrer de fome, sem vontade, vou penar a me arrastar pelo atalho. O outro neto sorri tão alegria que sucumbo. A filha desenha, faz a música subir até minha janela, e eu não respondo. A outra explica como fazer e dizer, obedeço. Há um caminho secreto e particular. A cada filho um segredo secreto e evidente: não se misturam; somos muitos, e os mistérios, as mágicas possíveis sem receita. Como azedar o Presidente, elogiar ou enforcar, não tem eco, nem som, e a banda toca e passa. Céus! Esta morto. Tanto barulho faz com que não escute. E se me estendes a mão, posso viajar no teu barco,  mas não te assuste na baldeação. As pessoas são assim, leves e flutuam, ou se afogam longe do mar. Ou ficam numa ilha inesperada, sozinha. Nada que salva pode ser definitivo.Te cuida. E aquieta. Observa. Todas as surpresas serão amanhã. Elizabeth M.B. Mattos – abril de 2020 – Torres

Marina Tsvetáieva

Como aconteceu? Oh, meu amigo, como aconteceu?! Atirei -me, o outro respondeu, ouvi grandes palavras- mais simples do que elas não há – e pode ser que eu as tenha ouvido pela primeira vez em minha vida. ‘Uma relação?’ Não sei. Estou comprometida também com o vento, por entre os ramos. Das mãos – aos lábios – e onde está o limite? Existe, aliás, o limite? Os caminhos da terra são demasiado breves. O que sairá disso? – não sei. Sei: uma grande dor. Vou ao encontro do sofrimento.” (p.298) Marina Tsvetáieva Vivendo sob o Fogo

erotismo

Erotismo. Dinheiro dobrado abraçado no/em coragem de amar. Os travesseiros ocupam a cama: espalhados, marcam o corpo. A vontade decide, levantas a voz. Enternece teu poder, e obedeço. Mestre silencioso. Músculo obediente e mãos abertas. A palavra vai laboriosa a procura de silencio. Atendes devagar. Vontade atravessada pelos dedos. Alegria se abre no corpo. A voz se desmancha na tecla. Permissiva ordem. Atendo atenta e acordo. Doas e depois organizas. Decides / domas e doas. O corpo vibra entrega, relaxado e feliz. Devagar vagando já tem peso o cheiro das margaridas amassadas. Nada vai faltar. A loucura vibra outra vez. Acompanho o silêncio perfeito do gemido, em letras soletrado. Nada irá me faltar, e eu danço. Elizabeth M.B. Mattos – abril de 2020 – Torres

Auto-retrato

Dificilmente temos consciência do que é significativo em nossa própria existência, e isso certamente não debe preocupar nosso vizinho. Que sabe um peixe sobre a água em que nada a vida inteira?

O amargo e doce vem de fora, o penoso vem de dentro, de nossos próprios esforços. Na maioria das vezes, faço aquilo a que minha própria natureza me impele. É embaraçoso ganhar tanto respeito e amor por causa disso. Setas de ódio também foram disparadas contra mim; mas nunca me atingiram, porque de algum modo pertenciam a um outro mundo, com o qual não tenho nenhuma ligação.

Vivo naquela solidão que é penosa na juventude, mas deliciosa nos anos de maturidade.” (p.5) Albert Einstein Escritoseiiiiiiiiiiiiiiiinstein foto.jpg

 

espias

Sem mil bobagens sem voltar /nem ir, uma  estrada floresta. Abrir picada, e sem descanso, eu te abraço e te beijo a cada metro, muito muito muito, e segues! Que posso eu fazer? Vou atrás a te cuidar. Espias! Vai, vai, caminha, um dia depois do outro, no outro, nós chegamos. E tu me abraças e rolamos pela grama. E tu me abraças! Alguém te perdoa, e te abençoa. Outra vida. Oura vida teremos, não me importo.Elizabeth M.B. Mattos – abril de de 2020 – Torres

sou eu

Sem vontade de inventar, sou eu. Nada mudou nem mudei. Faltam os espirros. E o  lagrimejar, a dor de cabeça e ser  diagnosticada. E se for irei. Sem despedidas neste ter de seguir / ir.

Passei o dia inteiro pesando em ti. Calçadas nossas, e combinações calculadas; inteligente e saudável, os dois com os pés na areia, a rir. Sem precisar fazer contas. Sem pensar em amanhã ou depois. Beijos e beijos, beijos e beijos.

Sem vontade, aos pouco, entre o nada e o muito, entre…, que importa? Eu te espero, durmo menos hoje porque ontem dormi demais, não leio, não aguento, sem a mínima concentração, li tanto antes, li tanto, nenhuma vontade agora. Não escrevo , não sei o que escrever, não penso, eu me debruço em ti. Prisioneiro de tantas bobagens e  penduricalhos do tempo. Dinheiro importava, não importa. Não importa, droga! Faço panquecas e abro um vinho, rimos. Atravesso o tempo. Não imaginas quanta tanta quanta enormes gigantes saudades sinto das tuas palavras, e tu amordaçado, meu querido. Elizabeth M.B. Mattos – abril de 2020, em noites tépidas, lindas, perfeitas e nossas…

Palavras chaves: inteligente e saudável. Droga! Perdi tudo. E tu te importas, claro que não.Vamos nos ver sem cálculos nem lógica. E estou morrendo, morrendo devagar não me importo, nem te importes. Saúde precisamos para amar, senão…Deixa o tempo levar!

 

finalmente

Olhei para ele: estava mais velho, mais velho que ontem ou antes de ontem do que poderia ser envelhecer. A roupa desleixada, mas o olhar não era triste, nem infeliz, nenhuma gota de amargor. Nos braços o pacote, também flores, e a correspondência. Dois livros. Agradeci. Em casa preparei um chá. Não tinha fome. Nem vontade de folhar uma revista, olhar pela janela ou. E a televisão? Talvez eu fosse uma das poucas pessoas que não assistiram um filme nesta semana, nada. As notícias entram pelo rádio. Um velho hábito. Estou cansada. Fisicamente dolorida, o apartamento estava sujo, então eu limpei devagar: urgente, amanhã termino. E poderia ser diferente, sigo pensando. Poderíamos todos envelhecer devagar aos sorrisos.  Os cravos e as rosas no vaso e o perfume se mistura com o aramo das goiabas. Lembrei que a mãe detestava cravos. Talvez por serem amassados e tantos tingidos, ou porque deveriam ter enormes canteiros de cravos em Guaíba. Elizabeth M.B. Mattos – abril de 2020 – Torres e agora chove

o sopro

image 2 interessante.jpgFarelos, fragmentos ou estranhezas.

Não estás em lugar nenhum. 

Será que ainda te reconheço?

O moço de olhos azuis, ou são verdes? Apressado, gelado. Eu te aqueço.
Abro o baú do tempo e retiro a manta que tua mãe tricotou.
Perdi o você depois que te conheci,
Nem sei por que cedi.
Elizabeth / Beth Mattos e penso nesta coisa complicada dos nomes F.H.T. Um nome, uma pessoa, outra, e depois ainda outra… Mudar na ventania, desaparecer no mar… Em abril de 2020 / Torres Lagoa do Violão sem frio, com epidemia a rondar.