És mulher

És mulher e basta – dizia o meu avô,  – Quando se lê  num  livro de centenas de páginas  de letra miudinha que uma mulher é  realmente um ser de maravilha, é  porque o escritor desviou os olhos da mulher dele é se pôs  a sonhar. Deixa – o ir.” (p. 20) William Saroyan  O Meu Nome é  Aram

Não trocávamos palavra, porque havia imensas coisas para dizer e não havia linguagem que as dissesse.” (p.41) 

aquarelas e

(01:53:11 depois das fotos e das aquarelas)

Delicadeza, perfeição no cotidiano, no uso doméstico da vida. Se houvesse um jeito de dizer! Qualquer objeto, qualquer luz e também o acaso de um casaco perdido nas costas de uma cadeira. Elizabeth M.B. Mattos – Outubro de 2020 – Torres

Três horas da manhã

Aquarela: Petya Taneva

Três  horas da manhã  1 : três  horas da manhã,  neblina e pingos de noite no corpo. Gelados, os pés . O frio me sacode. Será  a idade? Subo  as  escadas depressa e volto para as cobertas… Três  horas da manhã  2: delicadas louças floridas ,  esplêndidas aquarelas . Eu me inclino no detalhe. Cestas, pratas e porcelanas majestosas. 3: O som do quarto inunda a sala com violinos.  O frio arranca todas as palavras: silêncio. Acordo três horas da manhã , e vejo todos os jardins umedecidos.  Café  com leite , pão  com manteiga,  geleia,  patê  e pepinos. Suco de duas laranjas. Quatro horas da manhã.  A Ônix se refestela no peitoril da janela e o gato atravessa a rua. Fazeres de Beth sem jeito : descasco bergamota, as cascas ficam no balcão, copos espalhados pela sala, um chinelo perdido, o tênis embaixo da cadeira, a cama desfeita e os travesseiros afundados… Roupas para lavar no chão do banheiro.  O livro aberto em cima da cadeira, os lápis na mesa, espalhados. Luzes acesas. A música tão alta! É  proibido. Elizabeth M.B. Mattos outubro de 2020 – Torres

Aquarela de Ptya Taneva (enviadas pela aquarelista Marina A.B.P.)

Charles Baudelaire

[86] “Quanto mais queremos, melhor queremos. /Quanto mais trabalhamos, melhor trabalhamos e mais queremos trabalhar. Quanto mais produzimos, mais fecundos nos tornamos.

Após uma orgia, nos sentimos mais sós, mais abandonados.

Tanto no aspecto moral quanto no físico, tive sempre a sensação do abismo, não apenas do abismo do sono, do desejo, do arrependimento, do remorso, do belo, da quantidade, etc.” (p.81) Charles Baudelaire MEU CORAÇÃO DESNUDADO Editora Autêntica 2009 – tradução Tomaz Tadeu

Quanto mais leio, mais estranhada fico. Abismo enorme entre a vida: ser manhã ou noite. Necessidade dolorida rasgada de conhecer, sem ter, minimamente, a possibilidade de fazer acontecer um dia infinito, uma noite permanente, um verdadeiro acontecer (nebuloso dia, iluminada noite). “Tenho a sensação de estar capenga”. Estou/sou dolorida, moída pelo desejo. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2020 – Torres com vontade de aquarelar como a Marina, minha sobrinha. O talento precisa ser regado com mimos e trabalho, e coragem… Baudelaire explica muito bem, quanto mais, mais, mais, mais é possível.

Aurora I

” NOTAS de WILD

Minha vida sexual está praticamente encerrada mas –

Vi você de novo, Aurora Lee, que quando jovem eu havia perseguido com desejo sem esperança em bailes ginasiais – e que encurralei agora, cinquenta anos depois, num terraço do meu sonho.” (p.221) Vladimir Nabokov O Original de Laura

Sim, as leituras são feitas nestes contínuos S U S T O S porque eu me detenho em detalhes “persegui com desejo sem esperança” -, descrição perfeita para o primeiro/genuíno encantamento, e “encurralei cinquenta anos depois, num terraço do meu sonho.” Céus! Perfeito. Aos 70 anos nos tornamos obsessivos a correr atrás do sonho de vinte anos. Inexplicavelmente, estalar os dedos, a mágica certa, ou fechar os olhos e se entregar… Nabokov perfeito em se tratando de sensualidade. Persegue certeza, a boa magia. Beth Mattos outubro de 2020 – Torres

Escrever -, difícil / árduo, cruel em se tratando de verdade, escamotear a deixar, absolutamente, ensolarado o indizível.

caderno 1

Não existe entrega definitiva, sem volta: curva e tropeço. O mais ou menos claro/ ou nebuloso, que eu possa ter de quem eu sou atravessa a cruel incerteza de amar para sempre. Se eu me submeto, já enterro o meu sonho, e começo, inadvertidamente, a ser parte do outro…, e, logo / imediatamente eu me pergunto onde estou (geograficamente ou fantasiosamente), numa viagem de muitas chegadas / e tantas despedidas. É justo na NÃO entrega que se pendura o amor. Eu te espero. Não há passivo / ativo, quando o mapa do Eu fica indefinido, vou me transformando em sombra…, sombra aprisionada. Se eu o feri ao me afastar, ao te abandonar, também não deixei de me ferir e sangrar. Eu não me reservei a pior parte, mas, inquestionavelmente, faço parte deste abandono deste poema. Se eu te abandonei hoje, posso voltar amanhã, mas não tenho certeza… Não reservei o melhor para mim, nem o pior: somos parte deste desencontro. Se fracassei em lhe dar apenas felicidade, fracassei comigo mesma no grande amor para sempre (não li os contos de fada, fiquei no pedagógico e mágico momento do beijo). Ao te abandonar eu me senti infeliz com a possibilidade do rancor. E infeliz. A minha ansiedade te atormenta. E te seguir me parece tão pouco! Impasse.

Há um peso no ar, uma dor aguada que o vento leva porque é primavera. Como será ter apenas certezas? Transfiro dores e inseguranças e as palavras se enterram para florir. Elizabeth M. B. Mattos – outubro de 2020 – Torres

A vida pode ser adiar… É tanto depois, depois. E o tempo se esgota. Foi assim te amar. Foi para ser depois…

escrevo, tento entender

[…] “vi livros destinados destinados a equilibrar a perna manca de uma mesa; conheci – os transformados ]em mesa – de – cabeceira; dispostos em forma de torre e com pano por cima; muitos dicionários aplainaram e prensaram mais objetos do que as oportunidades em que foram abertos, e não poucos livros guardam, dissimulados nas prateleiras, cartas, dinheiro, segredos. As pessoas também mudam o destino dos livros. […] muita gente queimou livro […]. Haviam- se tornado notoriamente perigosos. Entre eles e a própria vida, as pessoas escolhiam, transformadas em seu próprio verdugo. Livros que haviam sido longamente estudados, discutidos, livros que tinham despertado paixões, compromissos irrenunciáveis, e distanciado velhos amigos, subiam ao céu transformados em cinzas de carvão que se dissipavam no ar. […] As relações da humanidade com esses objetos resistentes, capazes de atravessar um século, dois, vinte, vencer se se quiser, a areia do tempo, nunca foram inocentes.”(p.75-76) Carlos María Domínguez A casa de papel

Assim fazer a tal necessária seleção quando estantes não tem mais espaço e o espaço empoeirado enlouquece se torna o inferno do prazer, não se quer parar, interromper, nem entender. A cada volume o arrepio do tempo, da página lida, e daqueles que ainda, pacientes, nos esperam: hora de reclamar a finitude. Esta doente e incrível e mágica e intensa relação desespera. Não sei onde começa nem termina a relação. É, definitivamente A Linha de Sombra como bem descreve Joseph Conrad. A loucura da leitura e da releitura. Como viajar, passear, na mesma rua, na mesma cidade, no mesmo sentimento. Inacreditável contínua sensação: prazer e gozo. Um beijo se segue ao outro, colado, intenso, lento, e violento, eu me entrego, sem reservas. Elizabeth M.B. Mattos – outubro de 2020 – Torres