Cuidadosa, não necessariamente de caso pensado, não provavelmente não, mas aquele elemento constantemente introvertido sugere isso: não queria que o próprio interior fosse visível para os outros, não queria que fosse uma coisa que o olhar e os pensamentos dos outros pudessem explorar. Assim seria/é quem eu entender / ou narrar. Atrás de uma carta não existe apenas uma história, mas várias narrativas, ocultas ou evidentes. Pode olhar a lagoa imóvel, antes do temporal, da paixão, do inexplicável existe esta imobilidade gritando, e este olhar brilhando desejo. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2022 – Torres – esta agitação descreve a chuva, nem mansa, nem evidente, apenas o suficiente para encharcar por dentro.
Sinto falta de grandes amigos, sou afortunada, eu os tive. Saudade! Eles não estão aqui, ou, tão longe… Paulo Hecker Filho foi um destes grandes e poderosos amigos. Embora morássemos na mesma cidade nós nos escrevíamos, um jeito solto de dizer a verdade / era um missivista e eu, adoro cartas, o sentido da correspondência! Ah! “[…] o social é um jogo que segue regras predeterminadas, certas coisas são escondidas, certas coisas são mostradas, e de que vivemos de certa forma em uma ilusão. O jogo depende da participação de todos, a ilusão, de que todos acreditem nela.”(p.331) Engraçado! O que eu queria dizer?! Paulo e eu criamos um jogo nosso, as cartas. Guardei a dependência insana de partilhar tudo com ele, perguntar, dividir, discutir, arrastar as tristezas pequenas dos meus amados, os arrufos! ah! Sinto falta! Como sinto falta dele! Estas amizades seguem, nos acompanham como parte, intensidade! SOS amigos silenciosos! Onde estão? Quero saber e estar. Estou a ler Karl Ove Knausgard / jovem e vigoroso / audacioso, potente. E tropeço na memória / neste livro O fim ele faz um inventário / uma cartilha / uma trilha do que importa da/na literatura, e…, pois é, não me atrevo, o Paulo diria… Ele dominava o circo. Podia rir! “A risada é, nesse sentido, uma força social poderosa, um dos mais fortes mecanismos de correção que existe; poucas coisas são mais humilhantes do que ser motivo de riso em público, e para evitar essa situação o jeito é não se destacar, mas permanecer onde todos os outros estão.” (ainda na página 331) Estou divagando na saudade! Por que desatei a pensar e a querer que volte, ou que me escreva, ou converse, ou seja? Apenas para que ele sinalizasse a leitura. Risse comigo, ou me fizesse tomar outro rumo. Não. Ele estaria comigo, no mínimo diria, este jovem Karl Ove leu, leu e leu muito, enquanto escreve ele está na releitura dos grandes livros! Ah! E não podemos perder tempo / ou não deixamos de ler um segundo, ou temos que escolher os grandes, sem passar por eles não iremos a lugar nenhum…E eu encontro neste livro o primeiro conselho sobre Dostoievski e sua obra prima O IDIOTA / ele sinalizou: não serás especialista no grande russo, então, antes dos Irmãos, antes de todos, os outros livros, lê com cuidado O IDIOTA. Claro, eu li, com cuidado, com paixão, absorvendo e entendendo (eu acho). Karl Ove ensina, e comenta literatura, gêneros literário e define, e sublinha! Há que se acompanhar respirando! “ O Idiota é o oposto de Dom Quixote e Madame Bovary. O Idiota é uma anticomédia. O romance inverte por completo a lógica da comédia, porque é o cinismo do mundo que é revelado, são as pessoas que riem do vazio do mundo que são desmascaradas através de uma pessoa não hipócrita. Ah, mas que tipo de qualidade é a ausência de hipocrisia numa pessoa, que põe todos ao redor em desespero, faz a inquietude aumentar e eleva o caos a níveis ameaçadores, sem no entanto fazer nada além de existir para que tudo isso aconteça? O príncipe Míchkin acredita que aquilo que vê, aquilo que as pessoas mostram, é o que é, e que aquilo que é dito é dito com sinceridade. Ele não sabe nada de pensamentos ocultos, não entende ironias, não compreende a interpretação de papéis. Não tem a menor ideia de que a vida em sociedade é um jogo. Ele é um consigo mesmo, e parte do princípio de que todas as outras pessoas são assim. Mas elas não são, e o fato de que ele não sabe disso é o bastante para virar o jogo, porque Míchkin oferece a estas pessoas um lugar de onde podem observar tudo isso, um ponto fora da vida em sociedade, a partir do qual o próprio jogo torna – se visível, e com ele a arbitrariedade do jogo. Os papéis fazem sentido no contexto do jogo, mas quando o jogo é reconhecido como aquilo que é, eles perdem a razão de ser. Quem são as pessoas a partir desse momento? Elas mesmas? O príncipe Michkin é ele mesmo. Um ser indivisível, sem gêmeos, nem duplos. Mas em consequência disso ele também está condenado a permanecer fora da esfera humana. Uma sociedade composta por pessoas legítimas que mantêm uma relação de um para um com tudo aquilo que é dito e mostrado é uma sociedade onde nada pode ser escondido, nada pode ser ocultado, nenhuma diferença real pode ser criada. Em outras palavras, o legítimo é o oposto do social. O social divide, exclui, oprime, exalta. O social é um sistema de diferenças, um mundo onde tudo e todos são avaliados e diferenciados. O idiota acaba com todas as diferenças, no reino dele todos são iguais. Não é a bondade dele que cria problemas enormes para o social, mas a autenticidade.” (p.332-333) Ufa! Enorme a citação, mas não saberia dizer tudo e tanta clareza! E eu me lembrei do conselho, tenho que encontrar a carta onde ele indica e aponta e ajuda a escolher! Eu o segui, posso dizer religiosamente?! Não porque sou anarquista / desorganizada e tantas vezes apaixonada! E lembrei do Tavares! As leituras eliminam o social / excluem também, adormecem? Não sei. O que eu posso dizer seria a leitura sacode, a boa leitura! E não há tempo a perder! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2022 – Torres
“A grande ameaça em todos os romances de Dostoiéski é o niilismo, o ruidoso e reluzente parque de diversões do social em plena festa da ausência de sentido sob a noite escura do vazio, e ele se protege contra isso tudo co unhas e dentes, por repetidas vezes, valendo-se do sagrado e da simplicidade.”
Não posso continuar, posso dizer, é preciso estar lá e ler O Idiota / também entrar na aula de literatura / no pensamento / na ousadia de Karl Ove Knausgard
“Um dia, estávamos caminhando por uma estrada que subia íngreme, perto de casa, provavelmente, minha memória está cheia de subidas íngremes, devo confundi-las todas.” (p.123) Samuel Beckett Malone Morre
Fotos, lembranças, objetos, coisas. Enquanto limpo um livro, troco de lugar. Volto a ordenar a minha contínua e particular desordem. Eu me encontro com o passado / ou ainda no presente? E caixa de fotos!? Dentro do vento e desta chuva, da luz, a lembranças desfiadas, arejadas. Ah! Este esforço enorme para saber onde eu estava quando me senti extremamente feliz? E depois, infeliz, traída. Como consegui agarrar tudo, e fazer outro lugar ser meu, não sendo? Como foi mesmo estar na Garagem de Arte, e, depois ser despedida sem dó nem piedade, na surpresa surpreendida. Bem, afinal, era um possível precipício antes de ser arrematada. Foi tão inconsequente largar o magistério! Resolver interromper o trabalho de um concurso, de um tempo laborioso. E, ser, de/num repente rio cascata! Sou grata também de ter sido acolhida / surpreendida! E foram anos de marchand , muitos bons. Fiquei a mudar de casa de lá pra cá, pra lá, até chegar em Torres com as caixas, os livros e a metade das coisas. As que eu guardei comigo, ou que, ficaram apesar de (relembrando Lispector). Remexida nas lembranças de livros lidos. Ah! Frenéticas leituras estimulantes. Antes e depois.
Samuel Beckett in Malone Morre : “Só são minhas as coisas cuja situação eu conheço para poder me apossar delas, se precisar, essa é a definição que adotei para definir o que é meu e o que não é, senão, não terminaria nunca, o que, de qualquer forma, eu nunca terminaria mesmo. (p.98)
Algumas leituras não terminam, autores definitivos, lidos, amassados e triturados, esta voracidade eu sempre tive / e certos, específicos livros (como este que estou citando) me devolvem a hora, o momento, o ar do momento em que li. Curiosa sensação!
“Sinto estar, talvez, me atribuindo coisas que não possuo mais, e dizendo que estão me faltando coisas que não me faltam. Eu sinto que há outras, por fim, lá no canto, que pertencem a uma terceira categoria, a das coisas sobre as quais eu ignoro tudo e sobre as quais, portanto, há pouco perigo de eu estar certo ou errado. Eu me permito lembrar que, desde a última vez que conferi meus pertences, muita água correu debaixo da Ponte Butt, nas duas direções. Pois já morri o suficiente dentro deste quarto para saber que algumas coisas saem e outras entram, não sei graças a que poderes. E entre as coisas que saem, há algumas que voltam, depois de uma, mais ou menos, prolongada ausência, e outras que nunca voltam. Com o resultado que, entre as que entram, algumas me são familiares, outras não. Não entendo. E, mais estranho ainda, existe toda uma família de objetos, que parecem nada ter em comum, que nunca me deixaram desde que estou aqui, mas que ficam quietinhos no seu lugar, no canto, como em qualquer recinto desabitado”(p.99)
Eu já perdi o fio. O que eu pretendia escrever escapou. Distraída com as fotos do filho, do neto, da casa, da boneca, do tempo. Esta coisa de insistir em prender o tempo…, perdida em encontrar o ano certo para o evento certo. A tal memória emocional se agarro no sentir. As boas sensações, as lembranças ruins brotam para deixar nascer as boas. E enquanto tentava contar vou me dando conta, ou reafirmando que a coragem de viver existe na hora de viver. O fertilizante deve ser alegria. Ah! Lembrei! Eu ia / vou transcrever uma carta do FT em resposta a uma carta minha, no tempo dele estar lá e eu aqui. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2022 – Torres / Torres agarrou tantas histórias boas! Porque sempre existiram os verões. No tempo de Santa Cruz do Sul e Rio Pardo eu não vinha pra Torres / dois verões em Armação da Piedade – Santa Catarina, no Continente. A carta / as cartas / a seguir…
” Uma lágrima pode ser o poético resumo de tantas impressões simultâneas, a quinta-essência combinada de tantos pensamentos contrários. É como uma gota daqueles elixires preciosos do Oriente que contêm o espírito de vinte plantas, confundido em um aroma único. O que não se pode, o que não se sabe, o que se quer dizer, o que a si mesmo se recusa confessar; desejos confusos, penas secretas, lágrimas abafadas, resistências surdas, lamentos inefáveis, emoções combatidas, perturbações ocultas, temores supersticiosos, sofrimentos vagos, pressentimentos inquietos, quimeras contrariadas, mágoas feitas males indiscerníveis que no coração lentamente se acumulam num recanto, como a água que tomba sem ruído no côncavo de uma caverna obscuro; todas essas agitações misteriosas da vida interior num enternecimento concluem, e o enternecimento se concentra num diamante líquido à borda das pálpebras. Se um beijo de ternura é por si um discurso inteiro condensado em um sopro único, uma lágrima de ternura contém o valor de muitos beijos, e por isso mesmo é de mais penetrante energia a sua eloquência. Eis por que o amor quando é imenso, apaixonado, doloroso não possui muitas vezes outra língua senão os beijos, e as lágrimas, e mordidas, por vezes.(p.208-209) Henri-Frédéric-Amiel Diário Íntimo
Eu me sinto outra vez pessoa quando uma lágrima escorre, seja para me dizer que estás bem, seja para me dizeres que sentes dor e lutas. Se as minhas lágrimas lavassem teu rosto seria a mágica. Tu sabes. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2022- Torres
o outro,, na verdade, nos olhamos e nos vemos na outra pessoa, esquisito escrever assim, mas a vontade pode ser minha, ótimo, mas também recebo sentimentos / intenções / desejos e fobias
se analiso, não são minhas, não genuinamente, serão do outro?, mas, absorvo.
devo me afastar / ou separar / proteger, mas também enfrentar / resolver. Aceitar,
aquietar pode ser isso / escrever pode ser isso / ler pode atravessar limites.
Eu resolvo, mas como explicar, ajudar quem não resolve? Como conviver sem resolver?
ah! deveríamos ser mais poderosos / proteger quem amamos do sofrimento! mãe e pai tentam, mas não conseguem sempre / talvez a gente possa mesmo usar de mágico ou de feitiço! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2022 – Torres no meio de um frescor abençoado
aquela história de ser ilha, às vezes, parece tão lógico! mas quando temos filhos, arquipélagos não resolvem / temos que estar na mesma terra
Apaixonar tem um grau de novidade que se transforma em fantasia, depois em lágrima, e depois em risada, quero te dizer, estar apaixonada também te traz de volta meu querido, (tu sabes bem como te penso, e do jeito bom que entraste na minha vida). Espero/quero que voltes logo, e, fiques um pouco mais do que um dia, dois. Estou a fantasiar para te fazer sorrir / rir e voltar.
Esquisitice da vida! Um círculo vermelho, outro azul, também lilás, e outro amarelo por onde se atravessa o preto. Logo o confuso dos anos, e tu estás lá.
Também tu estás, minha amiga, os livros estão lá, Paulo Sérgio está chegando. Ah! Sonia! Quantas vezes nos penduramos na Ponte Aérea Rio/São Paulo/ Rio de Janeiro. Tu, minha amiga, tens a essência da amizade para sempre. Como se ainda estivesses viva. Elizabeth M.B. Mattos – março de 2022 – Torres
Afinal não temos saudade nem de pessoas, nem de coisas, nem de lugares, temos uma nostalgia do tempo, daquele Eu… Tenho saudade da Elizabeth / da Beth / da Chica /da Liza e da fantasia. A fantasia que faço de mim mesma criança, menina, pertencente, jovem, escolar, mocinha e depois mulher. Somos um EU gigante! Elizabeth M.B. Mattos – março de 2022 – Torres
Amigos, os amados amados. A família, a casa, aquela roupa, aquele momento, e ,somos nós ( o Eu) outra vez. E a vida que desenhei com escolhas doloridas, outras estupendas. Liberdade e prisão. Eu outra vez.
Colégio Bom Conselho – Formatura –minha madrinha Vera Mattos ZambranoEu com a Ana Maria – primeira vigem dela a Porto Alegre – 1969
Não cabe tudo num dia. Pequena a tarde. A manhã se agita em limpa aqui e ali. Hoje passei roupa, meia dúzia de acertos/coisas: ordem de engraçado prazer. Perfume. A possibilidade, e esta chuva a limpar, levar, reabastecer. Estou cansada, eu resolvo. Uma sesta, a pausa, mas não durmo. Abro o livro, os olhos cansam. Seguro a leitura. Volto ao a pensar no passado. Saudade engraçada, sublinhada: um tempo que eu não estava, o domingo em família define. Apenas aos domingos, as internas do Nossa Senhora das Graças que moravam em Porto Alegre, podiam almoçar em casa, aos domingos, e voltar às 17 horas. Então, eu via as irmãs, outra vez o pai, a mãe e a tia. O estar especial, a receptividade, e todas as certezas bem certas, definidas. A rua Vitor Hugo, em Petrópolis, se transforma em jacarandás, calçadas e brincadeiras. Se transforma na Beth criança, Elizabeth já lembra dos vizinhos chineses. Das sementes de melancia como petiscos. Dos aniversários. Das preciosas caixas de música que a Tinita presenteava; lembro dos dois irmãos que estudavam, estudavam; também da Joice, doce e sensitiva, não sei se perdeu a visão criança ou menina, nunca perguntei, apenas estávamos juntas… Juntos na rua Vitor Hugo, em Petrópolis, Porto Alegre. E eu gostava tanto deles! Uma única vez eu as reencontrei nos Moinhos de Vento. Todos resolveram morar para os lados de lá.
“Não são muitas as pessoas de quem nos aproximamos ao longo de uma vida, e não com prendemos a importância enorme de cada uma delas enquanto não envelhecemos e passamos a vê-las à distância. Quando eu tinha dezesseis anos, eu achava que a vida era eterna e que a quantidade de pessoas era inesgotável.” Karl Ove Knausgard (p.230) O fim
A intimidade com os livros me salva / não sei exatamente do que salva, talvez da solidão, desta coisa assombrada que é ser eu mesma, com meus fantasmas. Salva de eu ter ido tão jovem para o Rio de Janeiro e ter feito buracos nestas amizades da rua Vitor Hugo, tão preciosas! Os livros me salvam. De morar sozinha. Ah! Tenho a Ônix! Tenho as buganvílias. Tenho os netos que visitam e telefonam, tenho uma filha a quatro quadras daqui, e tenho o mar, tenho a lagoa, tenho as vozes na calçada. E o telefone desligado. Ah! Tenho os livros. Tenho segredos. Elizabeth M. B. Mattos
” Devemos escrever sempre como se escrevêssemos pela primeira e pela última vez. Dizer tanto como se fosse uma despedida, e tão bem como se estivéssemos estreando.” (p.79) Karl Kraus Aforismos