atravessar

Perco o fio, e, enrolada nele, a vontade de escrever / ou será a vida afogada nesta chuva invernosa, neste cinzento completo. Falta o cheiro da estação. Tanto frio eu sinto, ou este frio eu penso!? Não sei. Escuto vozes, eco, arrastam-se os risos protegidos do vento! Vou preparar a coragem, ando lenta lenta! Lenta! E a leitura desviada, presa na segunda guerra, logo a narrativa de outras guerras! Nós gostamos da batalha! Não é estranho?! Estar perto seria mais fácil sem o ciúme apertado do amor, apenas sentir! Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres, parece mais frio que o outro inverno, mas é apenas o frio…

Herta Müller

uma pista / uma pedra / o frio do lençol

” Georg escreveu: As crianças não falam frase nenhuma sem: ter de. Eu tenho de, você tem de, nós temos de. Mesmo quando estão orgulhosas, elas dizem: Minha mãe teve de me comprar sapatos novos. E está correto. Também sinto isso: Tenho de me perguntar todas as noites se o dia vai chegar.” (p.139) Herta Müller – Fera D’Alma

tu e o vento / tu e tua beleza / tu / tua instabilidade alegre

se eu pudesse dizer, abrir aberto o desejo fechado, eu te contaria todas as histórias, e tu compreenderias

se eu pudesse…

eu queria que o amor brotasse de novo, assim como a grama cortada. Ele deve, desta vez, eu te prometo, crescer diferente, assim como os dentes das crianças, o cabelo, as unhas. Ele deve crescer como quiser e tu entenderás do céu, da calma, e da paciência.

tão cansada passei o dia, dolorida, cansada. Assustei-me com o gelo do lençol e depois com o calor que veio quando me dei. E dormi a tarde comprida, e entrei na noite. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 –

couve e feijão

Couve refogada / feijão, batatas douradas e pensei na Inglaterra. As minas, aquelas pessoas enfiadas naquelas cavernas o dia inteiro, as batatas, no meu imaginário introduzi o feijão e a couve. Na couve fiz o capricho, o gosto, a ideia inteira. Não. Não vou comer carne. Nem farei arroz. Feijão, couve e batatas. A comida define a pessoa. Então, hoje, durante toda a manhã, com picareta e coragem estive nas minas de carvão da Inglaterra. Estive com eles. Sem falar, não digo muita coisa em inglês, mas sei o quanto foi complicado, difícil aquele tempo! Preparar a comida é um exercício de sobrevivência, assumir o real. De repente, depois de um bom sono, um bom banho, uma boa caminhada, as panelas e os aromas! A comida! Define quem sou. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

outro lado

Existe um outro lado do mundo, minha filha, um mundo escuro/obscuro/conhecido, mas não é o nosso. O sol e toda a luz deste inverno está no teu olhar, na lenha que colocas no fogo, no teu chimarrão, no cheiro de mar que invade tua casa, mal abres a porta! Nas venezianas escancaradas. No teu gramado, e na passarinhada agitada pelos ipês, pelas bananeiras, limoeiros e laranjeiras. Então, as pinceladas das tuas fotos, o colorido da tua comida, e os teus filhos, completam a luz! Este teu olhar, cansado de estudar, de fazer e fazer, de cumprir e ser, faz parte do momento, o fugaz! Aquele que o sono pode ser maior, a preguiça voluntariosa, e a vontade de se entregar pro amor, um, duas, três vezes a única solução! Ah! Este encontro com o amado faz o mundo desaparecer! Então! Então esquece o jeito de entender ou compreender / deixa o domingo rolar! Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

velhas

Velhas e silenciosas histórias de estórias agitadas das/nas sombras de um dia de sol neste inverno de 2022 – esdrúxula luz invade o teclado! É o piano e as cordas! Campeira / ensolarada / cozinhando / perfumada pelo vinho e tua alegria. Elizabeth M. B. Mattos – junho de 2022 – Torres

luxo e certeza

Luxo das viagens! Deste estar de mãos dadas, descobrir o prazer organizado e o intenso. Como explicar a vida e a generosidade de respirar e dormir, e de existir!? Também o iluminado se atravessa! De volta!? Não posso ter o passado / nem planejar o amanhã. Abro as caixas (enquanto o piano toca) e vou, passos lentos, aquecida pelo sol deste junho de 2022, a me relembrar/lembrando o detalhe, respirando com cuidado! É prazer. E todas as viagens pequenas foram estupendas porque…, por quê? Atravessadas pelo ou com amor. Fiquei carioca / não desisti de ser Eu. Casei / separei / segui em frente, e, conheci pessoas especiais/outras nem tanto. Pude seguir: ganhei Montevidéu e Carrasco! Ah! lugar e casa de sonhos! E estive a viajar no ritmo bom, com espasmos entrei nos meus reinos (os que eu não conhecia), escrevi as cartas certas, e muitas estúpidas, erradas, equivocadas. Dormi nos lençóis de rainha! Como posso contar este tempo?! Era uma vez

Nada é extraordinário, mas o francês, minha França, o espanhol, os livros seguem especiais, como as pedras! Por que mencionar? Estaria na Alemanha, na Irlanda ou na Holanda! As viagens estão nas caixas, e as caixas vieram comigo para Torres. Quando o mundo desabou, eu ainda tinha Torres: o porto seguro. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

BRISER LE TEMPS

Plus loin que le regard / Au delà de l´attente / En dépit de toute vie vécue /Il n’ y a rien à voir / Sinon le singulier besoin de vivre / et ma manière de briser le temps – Bernard Mazo – Passage du Silence

vocação

A memória fraccionada de coisas/detalhes que importaram: uma vez eu quis ser religiosa / entrar para uma congregação. Aquelas manhãs, todas, na capela. A missa em latim e o ritual completo. O silêncio, o canto gregoriano. Os retiros espirituais dançavam em sintonia com o meu sentimento: eu completa. Unhas bem curtas, cabelos amarrados, austeridade. Uniforme, aventais impecáveis. Leituras necessárias. O latim. Um ritual que me fisgava e roubava todas, quaisquer outras pretensões. Hoje descobrindo o eu ansioso lembro desta idade com doçura! A ideia seria servir e fazer bem feito, da melhor forma: servir. Agregar. Teria eu conseguido, não sei. O certo é que as Madres agostinianas atravessam / dominavam minha alma, mas, mesmo assim eu me insurgi algumas vezes… Embora preferisse subir o morro pra fazer o Serviço Social em vez de almoçar em casa, eu também pegava em justiça com as /por minhas colegas. Enfim, de tudo que fizemos, eu não cheguei perto do convento. Hoje não assisto missa aos domingos. Rezar eu rezo. Rezo. E converso com certa insistência quando me preocupo já com os netos, como se as correntes não tivessem sido devidamente arrastadas. Por que alguém sofre? Eu lembro também da Beth menina, das orações, da doçura rebelde! Depois veio aquela loucura de querer me casar! Sim, eu já tinha trocado de colégio, o Bom Conselho era festa e festa e brilho! Colegas inteligentes / professores ativos, e um ir e vir que se transformou em festas e festas. E de lá foi varrida a minha vocação religiosa. Ter amigas / dar risadas / dançar e dançar já com a boa saliência / malicia de querer o outro lado. Agarrei um noivo que era o avesso dos meus amigos certos. Circunspecto! Zélia Maria noivou, noivou com o noivo de toda a vida, e eu queria ser como ela, a menina que ela era! Ora ora dona Beth! Nada poderia ser mais esdrúxulo. E claro! Não deu certo! O desvio deu todo errado. Nenhum verão conseguiu corrigir aquela obstinação. Torres era o nosso ferrolho / Torres era a SAPT / a Guarita / a Praia Grande com as barracas, o vôlei na praia: a festa de ser livre. Éramos todos livres e alegres e amigos. A vida! Bem! A vida seria a continuação de todo aquele sol, das caminhadas, dos namoricos, dos jogos de carta! Dos amigos certos! Panquecas de bananas, filés e sorvete. Fartura em tudo. Música. E por que eu me desviei? Não sei. Carregava a fantasia de escrever. Não seria religiosa, seria escritora. Conseguiria dizer o que acreditava. Reviraria o tempo para conta e defender / usar a mesma bandeira. A bondade, agregar, unir, resolver! E eu lia muito / muito / como se fosse possível formar / deformar as ideias, assimilar o mundo pelas letras. A cada livro, uma longa e inesquecível viagem. E foi tudo dando / sendo meio engraçado. Romper aquele noivado foi sorte, foi menos um casamento rompido, não tenho zero de desejo real ou melhor, zero saudade daquela figura empertigada. Teria sido um catastrófico erro! OK! Todos nós já sabemos. Mas eu atropelei o tempo ao me casar com aquele homem tão lindo! Tão inteligente, Tão tudo o que poderia ser! E já tão absolutamente carioca! Bem! Eu ira ser carioca / eu iria crescer / amadurecer no Rio de Janeiro / seria lá, longe de todas as vocações de menina, que eu me transformaria em mulher. E me transformei em Elizabeth Menna Barreto Moog – encurtando as saias, usando o primeiro biquíni, descobrindo a bossa nova e o Balaio / e os lugares cariocas onde se dançava e também se podia pensar e ousar. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

por temperamento

“Digamos que por temperamento, sí, corro sin cesar en busca de ciertos valores, mientras que mi razón me muestra siempre que ese absoluto, como usted dice, es un engaño…Y también que sigo siendo una especie de adolescente por la emoción, el sentimento, la exigencia, aspiro sin cesar a una sabiduría indulgente, irónica, la de un anciano tal vez, sin que ponga en ese término la menor amargura; una especie de tio Majluf. El punto de vista de algunos ancianos siempre me ha parecido admirable, porque se atreven a hablar y a comportarse sin temor a la opinión de nadie. Digamos también que mi eespíritu ha envejecido más rápido qui mi alma, para emplear un lenguage convencional.” (p.202) Victor Malka Conversasiones con Albert Memmi – el papel del intelectual en el desarrollo de la identidad coletiva