feira ecológica

Culinária campeira num dia de sol: inverno protagonizando. Noite bem dormida, bem sonhada, festeja, e os lençóis revirados bocejam. Não! Ninguém come o aipim a desmanchar-se, o rolo de carne bom, bom, bom ao amanhecer! Café passado arremata! Claro! Tem pão quente e geleia de Myrtilles Sauvages (sabor dos sabores). Fico com vontade de correr a me olhar no espelho! Talvez Fausto tenha razão e o prazer da juventude seja o prazer dos prazeres. Podes me convidar para dançar! Irei! Bom dia! Um beijo! Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

2014 (JCKC)

Naquelas poucas horas, quis conhecer toda a minha vida, as minhas recordações, meus pensamentos, as minhas fantasias, os meus sonhos. Tudo. E compreendia tudo com uma rapidez e uma exatidão que, depois de um espanto inicial, me deu medo, pois a sua percepção desenfreada derrubava todas as barreiras protetoras. Nos anos que se seguiram passei a fugir toda a vez que alguém começava a me compreender. Isso melhorou. Mas uma coisa permaneceu: não quero que alguém compreenda totalmente. Quero passar pela vida sem ser reconhecida. A cegueira dos outros é a minha segurança.” Pascal Mercier

Pressionada pela leitura, e, com saudades. Saudade de ti. Por que foi tanto L.? não sei explicar. Associações cabíveis, outras fantasiosas. Pessoas entram no imaginário, permanecem. Presente. Presente para sempre. Tu estás instalado dentro de mim, quando te penso volto a ser a tua Beth. Deve existir uma Beth Mattos que é apenas tua. O jeito de expectador que tens, daquele que olha, às vezes me atrapalha, intimida. Não ouso, mas gosto. Fico no meu tamanho natural. Sem magia das poções de Alice. Pois é…, queria ter ousado Não é ridículo te dizer isso depois de tanto tempo?! Ridículo. Desfocada do meu velho mundo, sem jeito, corpo pesado, roupas velhas, volto para perto de ti…(tu mereces o melhor, sempre mereces). Bebo o bom vinho italiano que trouxeste. À volta ao encontro, a possibilidade de ser acolhida, reconhecida por ti. O abraço, um beijo. Na fantasia, diferente, sou /somos os estrangeiros, então, possíveis. Volto a citar o livro: “ Embora pareça hoje que Amadeu estava apaixonado, interessado por mim, não era bem assim. Não se pode dizer que aquilo era um encontro. Com tudo que ele soube de mim absorvia a própria substância vital, de uma maneira insaciável. Para dizer e outras palavras, eu não era alguém para ele, e sim o palco da vida, um palco ao qual se agarrou como se, até ali, tivesse sido enganado.” Lembro da tua chegada de avião em Torres, no verão de recomeçar. Na minha fuga para Torres. Renascer. Tua proximidade, a tua cumplicidade. Tua presença. Mas logo a tua vida / a outra gritou e tiveste uma filha, e eu um neto.

Pensei em ti dois dias, obsessivamente, estranhezas da vida. Tanta coisa a te dizer! Não imaginas como desaparece a olhos vistos o nosso balneário, o tempo das gincanas, dos cabritos, da natureza aberta, de dançar. De te namorar, da SAPT. Rapidamente vamos a desaparecer. Às vezes me assusto, outras aperta a saudade e pego o telefone, quero falar contigo! Depois espero por nós dois na mesma esquina, de frente para o mar da Praia Grande! Um beijo. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

Espera – Attente – Bernard MAZO

La joie de te reconnaître dans une ombre qui passe / Il faudrait remonter plus loin que toute attente / Retrouver la voix qui te ressemblait / Le visage qui était le tien tien sous l´epaisseur des rides / La vie chemine à fleur de peau difficilement /Plus lourde chaque jour de cette attente obstiniée. (Paris, Natal de 1964) – este livro, um presente de Flávio Xavier

Livre a tradução: Alegria, alegria de te reconhecer na sombra/no vulto que passa / Seria necessário remontar/voltar mais longe que a espera / Reencontrar a voz que se assemelha a tua / O rosto / a imagem que era/ tua atrás/através das espessas/ grossas rugas / A vida caminha pela superfície da pele / a flor da pele, com dureza/dificilmente? Mais pesada cada dia desta espera obstinada.

Mãos duras, marcadas: a pele?! Uma casta frisada / embora suave, encolhida e obstinada no seu desenho de pele… Este mapa desconhecido que te espera. Quero segurar a vida, mas, como diz o poeta, a vida caminha pela pele redesenhada. E o amor obstinado, a expectativa viva, a história que não te contei salta festiva e animada, queremos te ver. Que chegues logo! Elizabeth M.B. Mattos – 2022 – Torres

mudança

Tua carta trouxe a sensação de estar em casa! A sensação que estou precisando acrescentar a essa mudança. Cada vez que entro no velho apartamento para buscar ainda alguma coisa, acertar o que lá ficou /dar destino, as lágrimas chegam…Tu sabes o que é a casa voar? Espaços se abrem como buracos fundos, o vazio toma o lugar /cresce. Silêncio pendurado nos pregos das paredes. Sujeira pelo chão. Aquele cheiro de casa abandonada.

Sim, alegrou-me tua carta.

Os prazos explodem: empacotei o que vai para o Rio de Janeiro, para os dois filhos que moram lá: louças, quadros, livros, os pedaços. Esta parte está pronta.

Computador funciona sem telefone, a linha ainda não veio, vou instalar para conectar. A minha Luiza já mudou para sua primeira casa de Verona – Itália, careço conexão com os filhos. Trouxe a mobília, o que não vendi, mas ficou no apartamento, ainda, parte das roupas, livros pelo chão, cestos, restos. Entranhas da mudança. Antes ia tudo para um mesmo lugar, agora é dividir, apartar (expressão campeira). Amanhã empacotar. Uma dor doída meu amigo. Elizabeth M.B. Mattos julho de 2005 – Porto Alegre

Arthur SCHOPENHAUER

Sobre o Ofício do Escritor

4[275]

A vida real de um pensamento dura apenas até ele chegar ao limite das palavras: nesse ponto, ele se lapidifica, morre, portanto, mas continua indestrutível tais como os animais e as plantas fósseis dos tempos pré-históricos. Essa realidade momentânea da sua vida também pode ser comparada ao cristal, no instante da cristalização. Pois, assim que nosso pensamento encontra as palavras, ele já não é interno, nem está no âmago da sua essência. Quando começa a existir para os outros, ele deixa de viver em nós, como o filho que se desliga da mãe ao iniciar a própria existência.” (p.14) A. Schopenhauer

5[276]

A pena é para o pensar o que a bengala é para o andar, mas o caminhar mais rápido é aquele sem bengala, e o pensamento mais perfeito vai por si mesmo sem a pena. Só quando começamos a envelhecer é que preferimos nos servir da bengala e da pena!” Arthur Schopenhauer [p.15}

Então, eu corro. Atropelo o pensamento para que faça palavra escrita, depois, devagar, mais tranquila, vou alterando o cimento e a quantidade de tijolos que usei, planto margaridas, e faço/cuido/molho o gramado, sento, deito ao sol. Eu uso todos os truques. E quando escuto a tua história, vou vivendo, vou vivendo, assimilando, incorporando, então, eu te digo o que sinto: dividimos.

E como não quero aceitar, trocarei todas as palavras, e deitarei no sofá enquanto o filósofo explica o que me parece inexplicável. Depois, o que importa as minhas considerações se eu estou presa em todos as palavras do meu grande Arthur! Derramo lágrimas. Aceito os fotos. Avanço. Eu te encorajo porque seguir seguir seguir seguir é surpresa e serão tuas alegrias. Elizabeth M.B. Mattos

Nunca hei de saber se contou a história a minha mãe.

Termina aqui a narrativa de Trápani, com quem jamais voltei a encontrar-me. Na história dessa mulher que ficou só e que confunde seu homem, seu tigre, com aquela coisa cruel que lhe deixou, a arma dos seus feitos, creio entrever um símbolo ou muitos símbolos. Juan Muraña foi um homem que pisou minhas ruas familiares, que soube o que sabem os homens, que conheceu o gosto da morte, que foi depois um punhal e agora a memória de um punhal e amanhã o esquecimento, o comum esquecimento.” (p.60) Jorge Luis Borges O informe de BRODIE

Borges ditou seus escritos, sua obra que nunca termina. Não vai terminar porque se movimenta com intensidade, leveza, quase cruel / obsessiva ou, apenas, magnífica! Eu volto ao mesmo, a memória da memória pequena, porque, tola / descuidada. Esquisito ficar a querer, ou a imaginar o possível de continuar… Continuar exatamente o quê? Sigo, assim, às cegas, sem nunca ter visto / sentido o mundo como ele é. Apenas imaginei, e vejo fadas, príncipes, duendes. Caminho pelo subterrâneo, pelo interior da terra que equivale ao interior do corpo humano, e por toda a rede secreta por onde circula o ar e a água da imaginação.

Como el dormir, el cuento de hadas nos libera del imperio de la necessidad.

Era uma vez, o rito mágico necessário. Era uma vez uma menina curiosa, intrigada, amorosa e inquieta, que de tanto ir e vir / sair e entrar / perseguir e dividir, não cresceu, ficou, para sempre menina. Não cresceu porque o mundo lhe causou susto! Menina-velha. Velha, inquieta e assustada. Agora, ela escuta a terra, os pássaros e vê sinais no céu. Não é loucura, mas presença. Um emaranhado de vozes que contam/explicam/desenham um hoje colorido.

Agarrava-se a mim como alguém que sente o abismo sob os pés. […] Talvez a gente só viva uma hora dessas uma vez na vida, e entre milhões de pessoas só uma tenha essa experiência – e sem aquele tremendo acaso eu jamais teria imaginado com que ardor, com que desespero, com que incontrolável avidez um ser humano perdido suga mais uma vez cada rubra gota de vida, e vinte anos depois, longe de todas as demoníacas forças da existência, eu jamais teria entendido como a natureza por vezes se concentra em alguns poucos momentos, grandiosa e fantástica, em seu calor e frio, morte e vida, encanto e desespero.” (p.63-64) Stefa nZweig 24 HORAS NA VIDA DE UMA MULHER

Qualquer lembrança se afoga naquela específica memória: a de uma escolha definitiva, não tem volta. Afagada, sufocada sobrevivi como que revivi, retomei, ressuscitei a jovem que tinha cumprido o rito, e agora, finalmente, se libertava. O meu pai segurava o meu punho, e a mão inteira enquanto caminhávamos pela praia, foi ele quem me disse: ‘Agora, minha filha, estás livre para escolher o jeito / o modo / o caminho, não precisas mais te curvar a vontade de ninguém, e já cumpriste todas as obrigações impostas, serão apenas as obrigações escolhidas que te conduzirão.” Os meus olhos ardiam com lágrimas, e aquele verão em Torres se desenhou enfeitiçado pela liberdade, o sonho. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

passado no passado

A vida se mistura na fantasia. Estamos, nós os dois, a sonhar amarrados na realidade que é o dia pelo avesso, aquele em que nós dois não estamos. E, na fantasia da fantasia nos debruçamos. Sinto trepidar o que antes chamei de amor, paixão. Não somos nada que possa ser desenhado por um modelo daquilo que já vivemos. Isto é curioso. Depois, estamos a brincar. Do outro lado está a vida. Estaremos, tu e eu, preparados para olhar, de frente, a vida tal qual é descrita: comum. Lisa, arranhando aqueles estreitos conceitos que o cotidiano traz, a evidência. Teremos, tu e eu, o sentido exato destas coisas que nos saltam? Poderei tocar e cantar? Tu queres fazer o que nunca consegui fazer. Eu quero apenas que emagreças e dances comigo corpo colado no corpo. Exatamente numa mutação que estes quarenta e cinco anos nos trazem. Presos ao prazer de termos pai e mãe, uma rua chamada Vitor Hugo, sapatos solados com borracha, e, outra vez a fantasia. A história confidencia a necessidade premente de não apenas tocar ou conhecer o outro, mas transpor a barreira, conhecer o avesso. Se eu te toco não sou eu, se me tens, sou a outra, a menina perdida em Petrópolis, encontrada em São Paulo. Sobrevivente do Rio de Janeiro. A feiticeira, a mágica dos gestos repetidos. As lembranças perdidas. O cheiro da casa, o canto, o piano, o mistério escondido na memória. As marcas feitas com dor, agora prazer. Pensaste, exatamente, no que tudo isto pode significar se chegarmos a tocar piano, isto é, a fazer a música que está lá dentro? Dentro de nós, os dois? Poderei eu, a Beth, substituir o meu ardido desejo de escrever, escrever e dizer o que se amontoa na alma e nunca sai? Minhas dívidas com Iberê Camargo? Com Paulo Hecker Filho e ou com Flávio Tavares, aonde colocarei? Em qual acorde? Selarei este meu diabólico e insano desejo de ser o que se pode dizer na palavra, depois riscar, reescrever. O lido e decodificado papel, não as teclas do piano. Lerias as histórias escritas enquanto eu dedilhava o piano de Dona Ondina num ir vir notas e solfejos? Que ao menos eu esteja em ti! Escuto a música.

Conversei com P, ele me ouviu, paciente. Ainda sinto um peso, desânimo a cada palavra. A voz sai pesada, ou presa. […] O que nos angustia e agita? O que nos faz permanecer? A liberdade. Enquanto dormes solto e pesado, eu escrevo trepidando, ansiosa. Eu te quero tanto! Que o caminho vá se fazendo pelas pedras. Que os pés não sangrem na caminhada. Assim, poderás beijá-los. Eu também poderei beijar os teus pés no lento, mole e morno caminhar que tanto necessitamos! Que o prazer nos toque no lugar certo. Vou tentar fechar os olhos. Elizabeth M.B. Mattos -18 de dezembro de 2004 – Porto Alegre

amor guardado

Reserva, na última gaveta, aquela esquecida, mas intocável! Tudo que está fora do lugar, ou misturado, atrapalha: coloco nesta gaveta. Dores fazem cerco: joelho, costas, braços! Não tenho dores de cabeça, atrás deste poder, deste coisa boa, espero não me encontrar com surpresas! pois é! O sol dá uma colorida / um viva ao inverno, mas o danado e cruel gelo não sai do corpo! ah! Uma nova e festiva Beth, talvez, Elizabeth! Que as dores desapareçam!

Vou voltar (sempre há caminho) ao George Simenon, preciso da precisão, do mistério e da solução.

E do francês revitalizado: pequenos e grandes segredos!

12 de junho aniversário

Azar ou sorte, o aniversário ser neste fatídico dia que tem nome e sobrenome. A memória sela certeza, nunca foi. E por que tecemos fantasias, e alimentamos narrativas inviáveis?! Cada momento foi único completo absoluto até o momento que deixou de ser. Obviedade! Enfim! Nunca festejamos dias, sempre o dia certo para uma viagem certa! Ah! As melhores relações marcadas por acidentes fatais! Um nunca acidental ou consciente, ou mal administrado. Nunca festejamos esta data plural! No final, concluo, passados 22 anos do nosso evento principal, o encontro. Nunca fomos tu e eu, mas desenhamos um imaginário que te arrastou para casa, o Rio Grande do Sul. O que será que chamas de casa? Um quadro de Iberê Camargo na parede? Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2022 – Torres

23 anos

J´avais vingt-trois ans, mais j ´ai aujourdhui l´impression bizarre d´être alors seulement sorti de l´enfance. On dit que les Bretons ne sont pas précoces.

Alain Robbe-Grillet Le MIROIR REVIENT