Vender

Vender a alma, o carro, os quadros, a casa. Pagar as dívidas, e ganhar horas, dias, meses, anos! Sufoco na música… Escondida nos livros.  E tu me dizes ‘ Temos que ser competentes, para sermos loucos.’ A terrível loucura do ideal. Por que tanto desespero? Vamos apenas entregar a palavra à maresia, pras ondas, pro sal da praia e respirar.

“Tua memória há sem que houvesses,

Teu gesto, sem que fosses alguém.

Como uma brisa me estremeces

E eu choro um bem…”

Cancioneiro. Obras Completas – Fernando Pessoa (p.187)

Gavetas interiores

Nesse momento, você é minha “gaveta de guardados”…

Iberê Camargo

“... porque no decorrer do viver eu entendo que a vida é uma caminhada. Esses ciclistas são caminhantes. No fundo, sem meta. São seres desnorteados. No andar do tempo, vão ficando as lembranças; os guardados vão se acomodando em nossas gavetas interiores. Inicialmente, engraçado, as coisas que doem ficam mais. Como temos cicatrizes! A vida foi causando essas feridas que nos acompanham até o fim. Nós somos como uma tartaruga, nós carregamos a casa. Essa casa são as lembranças. Nós não poderíamos testemunhar o hoje se nós não tivéssemos por dentro o ontem, porque nós seríamos uns tolos a olhar as coisas como recém-nascidos, como sacos vazios. Nós só podemos ver as coisas com mais clareza e mais nitidez porque temos um passado, compreende? Ele vem se colocar, ajudar a ver e a compreender o momento que estamos vivendo.”  (p.30-31) Conversações com Iberê Camargo – Lisette Lagnado.

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“Inspirado por uma ética de auto-superação, comum aos expressionistas no sentido lato, a poética de Iberê Camargo seria uma declaração enfática em favor da repotencialização constante da vida. O real será movimento, esforço e ânsia de realização. (…)” RONALDO BRITO, 1993

Somos nós …

O que dói

Última hora: Não vou a Santa Maria.

Querida Beth,
Porto Alegre, 13 – 2 – 1990.

 

Tua carta tem uma presença quase física, nela tu revelas a alma. Gosto de te ouvir. Gosto de te sentir perto de mim. Espero que o muro de Berlim que nos separa, termine por ruir. Não é compreensível, hoje, uma atitude machista, medieval. Não se pode aprisionar um coração. Eu te recordo sempre, com um carinho de amigo, mas a recordação, a lembrança não tem a concretitude do agora, que é o presente da vida que flui. O agora é este momento que já não é mais, quando acabo de pronunciá-lo. O tempo é um rio que nos arrasta, que nos leva para o nada. “Somos seres transitórios” – nos diz Dickens. A certeza desta transitoriedade nos deveria tornar mais vivos, mais atuantes, mais independentes. Somos no fundo bois de carga, passivos, domesticados, vivendo de mentiras. Não sei por que enveredei por este assunto. Amiga, eu sempre procurei e procuro a verdade das coisas, tenho um sentido metafísico da vida. Às vezes atravesso períodos de profunda depressão, sem motivo determinado, objetivo. Estranho e limitado é o ser humano, incapaz de entender o seu próprio ego. Não raro sinto-me como meus ciclistas, que vagam por um mundo deserto, morto. No fundo, querida Beth, eu sou eles. Mas eu tenho que dizer, tenho que pintar a verdade porque só ela importa! E a beleza? Talvez verdade e beleza seja uma só coisa. Gostaria que visses esses meus últimos quadros, esses ciclistas de que falo. Não sei o que foi exposto aí em Santa Cruz. Talvez sejam serigrafi-as ou desenhos. Estamos planejando ir a Santa Maria na próxima se-mana, se não começar a chover adoidado. Gosto de rever aquela cidade e, principalmente, reencontrar os poucos amigos que ainda me restam. Para mim é santo o lugar onde estão os meus mortos. Ah, seria bom se na passagem pudesse te ver aí em Santa Cruz. Para ser sincero eu re-ceio os ciúmes do teu marido. Eu não quero te criar aborrecimentos. Não quero magoar ninguém. Eu seria feliz se tu pudesses vir amiga, com muito carinho – o Iberê
Não esquece: eu te quero muito bem.

Ignorância

Ignorância

CONVERSA com Iberê

Lizette Lagnado:
Para escolher ter aula com um artista é preciso admirar sua obra? Como Llote e De Chirico impregnaram um pensamento sobre você?
Iberê Camargo:
Não admiro a obra de Llote. Cito-o como teórico e grande professor. Com De Chirico sinto afinidade porque também expresso solidão e o mistério que envolve as coisas.
Lizette Lagnado:
Num período em que a educação artística só era possível através de reproduções, você diz que foi importante, quando viajou para a Europa, ver um Rembrandt ou um Picasso ao vivo. Se pensarmos na formação da geração atual, este fato ocorre bastante tarde em sua vida.
Iberê Camargo:
Uma viagem ao velho mundo, raiz de nossa cultura, é sempre importante. Ver o original de uma obra é dispensar o intérprete. Não se trata de cedo ou tarde, mas o de saber ver. Milhares de pessoas desfilam pelas galerias do Louvre, olhando sem ver. Newton descobriu a lei da gravidade refletindo sobre a queda de uma maçã. Quantos antes dele foram atingidos por objetos que caíram do alto, sem jamais questionarem a razão da queda. O conhecimento enriquece, a ignorância deprime. (p.21-22)
Conversações com Iberê Camargo – Lisette Lagnado – Iluminuras – 1994

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Vitrine

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A casa é pequena e a vida fica toda na vitrine.

Foi o que escrevi. Ao reler percebo a sensação morna do transe na madrugada. Nostálgico, dramático, no mínimo estranho. Quero embalar-me nas  emoções. Deveria ser racional, usar a lógica para ver o outro como ele realmente é. Fria ou incompreendida?

A casa está bem gostosa no seu mínimo… Penso. Há qualquer coisa de trágico na “queda” livre… Perda de poder. Pessoas se matam, enlouquecem ou vendem a alma pela riqueza. É como envelhecer. A decadência é vil, usurpadora, cruel. Nunca estaremos prontos para as perdas. Competir é resvalar pondo em jogo o equilíbrio, a sanidade mental. Provação. Naturalmente compreendo a necessidade de interiorizarão. Cidade menor  pode ser fuga ou sobrevivência. Recriar a pequena casa. Refazer, refazer. É preciso largar, mudar para encontrar. Somos apegados a nós mesmos. Eu sei.

Imaginação mineira

“Temo a vida subjetiva e recuo ante qualquer empresa, vontade, ou promessa que me obrigue ou me realize; tenho o terror da ação e não me sinto à vontade senão na vida impessoal desinteressada, objetiva do pensamento. Por que isso? Por timidez. De onde vem esta timidez? Do desenvolvimento excessivo da reflexão, que reduziu a quase nada a espontaneidade, o impulso, o instinto e por isso mesmo a audácia e a confiança.” (p.84) Diário Íntimo de AMIEL

Às avessas, primeiro a alma, primeiro por dentro, primeiro o pensamento, a ideia de ser alguém; e depois o vulto que se confunde na imaginação e custa a entrar um dentro do outro. Duas, três, quatro fotos pelo correio. Sem cheiro. Olhos pretos, cabelo tão escuro! Pele morena, corpo pequeno. Óculos grandes, os de sempre, mas ainda não é ele. A imaginação caminha pro lado contrário. Unhas retas, longas. Particularidades. A boca se abre num sorriso entregue. Observo os gestos lentos, nervoso. “… é quando não se espera mais nada para si mesmo, que se pode amar.” Outra  vez Amiel. Ombros pequenos. Palavras espremidas no encontro. Atropelo sem lógica. E o abraço é fundo, demorado. Esqueço. Fico quieta na curva do seu corpo. Somos dois malucos exercitando, alegremente, as melhores fantasias. Somos bons nisso. Em que mais seremos bons? Vontade de comer esta loucura. Engolir. Controlar. E ficamos esperando que aconteça o tempo, a hora, a normalidade. Mãos dadas sem pânico, sem aquele medo doente de explodir. Eu te espreito. Os primeiros toques esquerdos, os nossos. Doce, tranquilo de paz. Observa, quando olha. Escuto tua voz e penso que teus olhos espiam, antes de ver. Imaginação. Nascente de Tua Memória Há Sem que Houvesse

Coisas de tanto tempo! Elizabeth M.B. Mattos – agosto – 2013 – Recife

“Temo a vida subjetiva e recuo ante qualquer empresa, vontade, ou promessa que me obrigue ou me realize; tenho o terror da ação e não me sinto à vontade senão na vida impessoal desinteressada, objetiva do pensamento. Por que isso? Por timidez. De onde vem esta timidez? Do desenvolvimento excessivo da reflexão, que reduziu a quase nada a espontaneidade, o impulso, o instinto e por isso mesmo a audácia e a confiança.” (p.84) Diário Íntimo de AMIEL

Um sempre

Tudo importa. Cada lembrança! Saudade do tempo que não teremos. Quero aquietar-me nos teu abraço. Se existisse um sempre eu queria que este sempre fosse você. Não pode haver medo de perder o que não se conhece… Temos a fantasia e a possibilidade de. Digo sem me fazer entender. Somos como o mar. Inconstantes? Quebramos na areia… Esparramamos vozes! E precisamos do toque. Segura minha mão. Elizabeth M. B. Mattos 2013 – Torres

REsposta

Ventilas o assunto da forma justa. É tudo misturado mesmo. E as ‘queixas’ são disfarçadas, as minhas nas dela, as dela dentro das minhas. As mesmas. Caímos em armadilhas, e o susto sufoca no grito. Se concordássemos… Mas exasperam, aborrecem…

É esponja, é molhado, é áspero. É viver. Complicado ser pessoa.

Confissão

Cartas e histórias. Uma tela, um texto, narrativa completa. Pesquisa, resultado. Ou vulto, circo, nada, resultado. Uma única carta entre muitas, como esta de Iberê. O tempo não devolve as omissões, fica o lamento. Nem as dores. Nenhum amor… O que deixou de acontecer, apenas não aconteceu. Transito no vazio da desordem interior. E se hoje preciso tocar foi porque ontem não avancei nenhum passo. Eu me escondi… Elizabeth M.B. Mattos – Porto Alegre – 2013 –

Na foto, eu jovem.  No fundo, o óleo sob tela,  Carmélio Cruz – 1966 – Porto Alegre e fotos de Iberê Camargo com Pedro.  Viúva Lacerda – Humaitá – Rio de Janeiro.

“Porto Alegre, 25 – 02  – 1994

Querida Beth,

Mas como sou amarrada”, me dizes. Concordo. As dificuldades estão em ti, tu as cria e as alimenta. Por favor, reflete sobre esta frase de Rimbaud: ”Por ser gentil, perdi minha vida.” Vejo teus sucessivos hóspedes ocupando-te as férias, ocupando-te o tempo todo. Torres é um balneário que dá status. Nada melhor para esses teus amigos de areia, do que bronzearem a bunda com pouca ou nenhuma despesa. Seria melhorque ficassem em suas casas e enchessem uma bacia de água salgada e enfiassem o rabo dentro, melhor que interferirem na vida alheia. Não encontras uma ocasião para vir por que realmente não desejas. Estelita que se prontificou em te ajudar, até hoje aguarda a tua resposta. Ela não entende o teu silêncio. Falo-te assim duramente porque sou teu amigo de verdade. Sabe Beth, nós precisamos viver com verdade. Eu estou gravemente doente. Agora, tenho uma febre permanente que me deixa muito excitado. Se não aceitas o que eu disse, esquece e perdoa. Nossos abraços, nossos beijos

 o Iberê.”