Não esquecido. Lembro, penso, e não escrevo. Sem energia, fica para depois. Sem fogos, sem dançar, sem folia, completo silêncio. Vontade de parar, e depois fazer, mas sem ânimo. Esvaziada. Desanimada. Escrever faz acontecer, mas agora parece diferente. Faltam palavras. Leio sem voracidade. Escrevo aos pedaços. Nas peles da cebola, Günter Grass escreve: ‘países sulinos, lá onde os limões florecem’. Pondero: já é tarde, está tão e, absolutamente, decidido que não irei nem ao sul, nem ao norte, mas eu penso neste lugar onde os limões florescem… Metas curtas e mínimas. Pequenas distâncias entre o mar e a calçada, ou comprar um flamboyant parece a extravagância certa. Atravesso, convencida de que os livros lidos definem/desenham a pessoa, e todas as leituras travadas, não feitas, empurradas, também possuem carne e osso, um EU atrapalhado, tenha ou não feito terapia, dormido boas noites, ou viajado pelo mundo. Esta geografia interior é mais clara quando me olho no texto. As descrições da casa da Vitor Hugo em Petrópolis, os cheiros peculiares das frutas. O olhar esverdeado, um grande lago, do meu pai, os cigarros e o café preto da minha mãe, sua elegância. A voz enérgica da minha tia Joana, e os cães, o quintal tem som. Os bailes dançados. Os sentimentos blindados. A leitura paralela: “Um ambiente varrido sob um telhado são e salvo à espera das coisas que viriam. Por isso havia baldes de água dispostos em fila e além de espanadores à mão para apagar o fogo e mais uma pipa cheia de areia para cobrir as chamas. Mas o que é que eu lia sob a lacuna do sótão? Provavelmente O Retrato de Dorian Gray, pasto ruminado de leitura que, encadernado em corda e com lombada de couro, pertencia ao tesouro livresco de minha mãe. A oferta abundante de Oscar Wilde em vícios, que sobrepujam uns aos outros em pecado, se adapta para olhar meu interior através de um espelho. Foi por certo naquele tempo, também, que tomei emprestado a alguém o Leonardo da Vinci de Mereschhowski, para em seguida devorá – lo no sótão. Sentado sobre um balde de apagar o fogo virado de ponta-cabeça, eu lia mais do que conseguia guardar. […] encontrei o romance de Erich Maria Remarque no armário de livros do irmão mais novo do meu pai. […] Suponho que meu tio não soubesse que Nada de novo de front estava na lista dos livros proibidos, assim como também eu li a história da morte miserável dos jovens voluntários da Primeira Guerra Mundial sem ter ouvido que esse romance fizera parte dos livros queimados. Até hoje o efeito retardatário de experiências de leitura pretéritas não me abandona. Como o par de botas muda de dono… Como todos se calam, um após o outro… Sempre de novo autor e livro me fazem lembrar minha ignorância juvenil e ao mesmo tempo o efeito sobriamente limitado da literatura.” ”(p.86-89) Continuar lendo
Mês: janeiro 2019
embotamento desapontado
“E o verão foi seco, quente, ventoso. Por todo lado havia areia, que cobria muita coisa, também os pensamentos, que porventura tivessem me coçando um pouco a consciência. Mas além de toda a ação paralela e para ir direto ao ponto, eu me vejo se não contente, pelo menos aliviado desde que o rapaz havia desaparecido. As mordidas da dúvida em relação a tudo que se fazia crença empedernida diminuíram. E a ausência do vento em minha cabeça por certo não permitiu que nenhum pensamento levantasse voo. Só o embotamento é que se espraiava dentro dela. Estou satisfeito comigo mesmo e saciado. Um auto-retrato imaginativo daqueles dias me mostraria bem alimentado.” (p.82) Günter Grass Nas peles da cebola Memórias
Trabalho permeia sentimento. O exercício necessário para lembrar, a memória ela mesma, não chega leve nem solta, atrás do tempo, a justificativa. Se eu pudesse construir uma caixa-apartamento isolaria paredes de todos os aparelhos, gosto do silencio ruidoso da natureza. Terrível não poder ajudar, não ter a palavra, não conseguir mudar o incerto. Sentimento inculcado a força, sob pressão, transforma o simples num rendilhado de incógnitas. Prazeres se alternam. Açudes, ovelhas e charolês, o campo e certezas. Não apenas uma memória, tantas lembranças! O querer sem saber se pensa amor… Como explicar? Se os tempos voltassem! Somos nós, sou eu querendo ser uma Eu que perdi naqueles livros, naquelas certezas tranquilas porque futuras. Hoje repasso as estantes nostálgica. Quanta força! E agora, tão lenta! Se aquilo tudo que foi ainda fosse. Se o cheiro da colheita, ou as porteiras abertas deixassem a risada entrar… As crianças não teriam crescido, e a expectativa corajosa estaria toda aberta a desdobrar do amanhecer os abraços e os beijos pequenos, o cheiro suado de cada um, e o zelo. E as pessoas. Envelhecer tem um gosto desarrumado. Nada importa. E a minha menina brinca com bonecas, faz ginástica, aprende inglês, judô, dança. Céus! Ser criança/menina passa tão depressa! Amanhã vou fazer uma carne de panela, cozinhar batatas. Salada verde vermelha, e o pão e o vinho e a manteiga… Preciso perfumar a casa, colocar as margaridas com as rosas. E me desfazer dos livos que não serão lidos. Belicosa e desatenta é a vida. Elizabeth M.B.Mattos Torres – janeiro de 2019
PARA DEUS To God
If you have formd a Circle to go into
Go into it youself & see how you would do
Se você fez um círculo para se entrar
Entre nele você mesmo, e veja como se sai.
***
The errors of a wise man your Rule
Rather than the Perfections of a Fool.
Guiam – te mais os erros do sábio
Que as perfeições do otário.
***
If you play a Game of Chance know before you begin
If you are benevolent you wil never win.
Num jogo de azar, saiba antes de jogar
Que a benevolência não te faz ganhar.
William Blake
Escritos – edição bilíngue – Rebeldes Malditos – Tradução de Regina de Barros Carvalho
Não sei se este livro fica ou vai. Espero a chuva. Arrumo, limpo, separo. Sinto falta de alguém para ler em voz alta, ou me escutar. Chatice de ser eu mesma. Estes hábitos cavernosos excluem… Como companheiro, quero, se querer ainda posso, um homem simples no fazer e no viver: terno amável e amado e livre e laborioso. Um beijo e outro beijo. Beth Mattos, chove no sol. Como está calor! Dois minutos abro a janela, logo seguro o refrigerado, recuo, fecho a janela. Elizabeth M.B. Mattos – junho de 2024 num outro ano qualquer do passado – todos são presentes.
tempo de tanto tempo
Levantei para escrever um segundo, uma frase, preciso me apressar neste tempo. Simone de Beauvoir, em Mulher Desiludia: “Em minha idade temos hábitos que freiam a invenção. Cada ano que passa fico mais ignorante.”(p.11) E cada dia fico mais inquieta, vaga, caminho em lapsos de alegrias ou soluções, ou me interrompo com nostalgia apertada. Ora o campo, ora a cidade ou ainda a beira do mar. Hoje a foto da rua José Picoral devolveu serena lembrança! Tempo de tanto tempo! O prazer devolve questões existenciais:
“- Evidentemente, como você vive para os outros, vive também por eles – disse- me. – Mas o amor, a amizade, é isso: uma espécie de simbiose.
– Mas, para alguém que recusaria a simbiose, seria pesada?
– Nós pesamos para as pessoas que não nos querem quando as queremos, é uma questão de situação, não de caráter.”(p.125)
Jogo incômodo de ser/estar/ficar sob a mira de um amor amado, de uma amizade ferida. Das questões. Perguntas. depois de uma certa idade, passados vinte anos, depois de termos perdido o encontro…, não faz mais sentido voltar. Eu deveria ter aprendido inglês, deveria, mas não sei, não era importante. Amanhã vou estudar. “A pavorosa descida ao fundo da tristeza!” (p.126) Amanhã. Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2019
trocar de roupa
Aquilo que dói e continua doendo. Aquilo que respira enterrado. O equívoco. O monstro que alimento e me espicaça. A leitura poderá sufocar. Ou a vida salva e transforma.
Sim. Existe o que aparentemente nunca existiu, pulsa no interior. Dificuldade para entender a guerra. Quem fugiu da Alemanha, mas em algum momento compactuou porque era alemão. Eu me sinto amassada, triturada pela leitura. Não sei se quero esta memória. Günter Grass se desdobra com veracidade, coragem, total nudez. Como é difícil dizer a verdade. A ficção é tão confortável! Se fazer personagem num Eu… Dizer a verdade, escrever sobre o que foi/é a verdade…, e mentir. Difícil! Tropeço na leitura. Será que eu quero alguma verdade? Elizabeth M.B. Mattos. Torres – 2019.
“… a recordação assemelha-se a uma cebola, que precisa ser despelada a fim de que seja exposto o que então pode ser lido letra por letra…”
“Mas eu cresci e cresci. Já com dezesseis anos, quando cheguei ao trabalho obrigatório ao reich, consideraram que eu crescera o que tinha de crescer. Ou será que por fim medi 1,72m apenas quando me tornei soldado e sobrevivi só por sorte ou por acaso ao final da guerra? Nem cebola nem âmbar dão importância a essa pergunta. Os dois preferem saber de outras coisas com mais exatidão. O que há de encapsulado: o que foi engolido com vergonha, segredos que sempre de novo trocam de roupagem. Aquilo que ocupa seu ninho como os ovos de piolho nos cabelos. Verbos evitados verborragicamente. Estilhaços de pensamento. Aquilo que dói. E continua doendo... (p.59) Günter Grass Nas peles da cebola


Aquilo que dói e continua doendo. Aquilo que respira enterrado. O equívoco. O monstro que alimento e me espicaça. A leitura poderá sufocar. Ou a vida salva e transforma.
A Ladeira da Memória
Velhas e incansáveis citações. O livro me perturba, estremeço. Preciso me agarrar ao corrimão e descer as escadas devagar. Subir parece mais fácil.
“-Não sei se me faço entender… Se queremos andar, caímos. Já a noite, todavia, anda muito certinha desde milênios. Isto é, certinha relativamente. Na grande viagem ela também oscila um pouco na ‘bitola’ por causa das folgas e apertos a que os sábios chamam mutações e processões…
De fato íamos num embalo.
-Ah! A noite! Vai atravessando estas bandas, desmesurada e compacta, preservando o que recebeu do dia, guardadora fiel da contingência legal do tempo horário… Sim, realidade opaca, não imóvel nunca mas sempre conteúdo e medida, instante e sucessão, ela é indiferente e cega, cega e inumana…
Pensei comigo: ‘ Meu tio deixou de ler os clássicos, anda agora a ler ciência e filosofia…” (p.21) José Geraldo Vieira A Ladeira da Memória
Eu me salvo a cada parágrafo. Beth Mattos
quando engoli perguntas
Droga! Indigestão. Contar e perguntar lava o passado, alveja, perfuma a vida. Danadas lembranças/memórias se abrem expostas, machucadas. E tudo empurro… Há de haver um buraco bem grande para se enfiar com elas, e depois volto ilesa. Viver é tão bom! Estou com Günter Grass “Porque e também aquilo tem de ser lembrado. Porque poderia faltar alguma coisa petulantemente dando na vista. Porque quem foi que e quando foi que caiu no poço, e isso quando já era tarde demais: meus buracos tamponados apenas mais tarde, meu crescimento irrefreável, minhas relações linguísticas com objetos perdidos. E também este motivo de ser mencionado: porque quero sempre ter a última palavra.
A recordação ama o jogo de esconde-esconde das crianças. Ela se escafede. Inclina-se a embelezar as coisas e gosta de enfeitar, muitas vezes sem motivo. Ela contraria a memória, que se mostra pedante e, quizilenta, quer ter sempre razão.” (p.10) Nas peles da cebola – tradução de Marcelo Backes, Record, 2007 – Rio de Janeiro

Solange
Minha amiga Solange está certa, o aperto que aperta e estrangula se gruda na finitude da vida, agora, nesta idade, tenho certeza, mínima certeza, se sou lúcida e lógica ou coerente e pessoa, vai terminar a festa no por do sol. Elizabeth M.B.Mattos – janeiro de 2019
brinca desconfiada
História travada. Vazia de sentido. Sem personagem, nem divagação. Inteligente, emocionalmente, atrapalhada. Boneca mimada, brinca desconfiada entre acertos certos. Encabulada, escondida. Casa ruidosa. A mãe acende um cigarro depois do outro entre costuras bordados, enxovais. Um armário cheio de portas, depois de abrir a primeira, uma alavanca, outra porta se abre. Bom esconderijo aquele. Livros se enfileiram nos seus olhos. Sabe – se o que pode e não se pode fazer. Seguindo sinais na rota, tudo é possível. Elizabeth M.B. Mattos – janeiro de 2019 – Torres

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